Há um bom tempo venho ensaiando em publicar Terra,
este belíssimo poema de Cecilia Meireles...,
presente no livro Viagem, de 1939. Assim, após as postagens especiais
de: Rômulo
Rema;
Retrato; Orfandade; Vento; Amphora; A Língua
do Nhem..., em tempos de convulsão e confusão mundo afora, acho que este
é o seu instante. Uma boa reflexão a todos (as).
***
“No caminho da evolução poética de Cecilia
Meirelles o marco inicial é um lirismo de doçura tagoreana, que aponta para
"Nunca mais" e "Poema dos Poemas" e "Baladas para
El-Rey", e o marco atual mais característico é um desencanto de tudo a
evolar-se num dorido desdém, num ceticismo penetrante, que não é recurso ou
atitude literária, senão que constitui o resíduo final, ou melhor, a imanência
de uma alma para quem não apenas o céu, mas também a terra com os seus seres
insignificantes e circunstancias e com as suas cousas precárias e pobres - tudo
afinal é vazio, vazio... O intemporal, o que está além dos sentidos enganosos -
eis o que parece exercer maior fascinação sobre essa alma - chama aguda que mal
tremula aos sopros bravios do mundo contingente. (...) Contentemo-nos em dizer
que — assim em quantidade como em qualidade — a mensagem poética de Cecilia
Meirelles é das mais consideráveis e poderosas até hoje escritas em língua
portuguesa.” A. R. - em Antologia
da Moderna Poesia Brasileira (1939).
***
“Minha infância de menina sozinha deu-me duas
coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e
solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os
caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios
revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais
tarde, foi nessa área que os livros se abriram e deixaram sair suas realidades
e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se
possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os
fios de um pano.” Cecília Meireles.
T E R R A
Cecília Meireles
Deusa dos olhos volúveis
pousada na mão das ondas:
em teu colo de penumbras,
abri meus olhos atônitos.
Surgi do meio dos túmulos,
para aprender o meu nome.
Mamei teus peitos de pedra
constelados de prenúncios.
Enredei-me por florestas,
entre cânticos e musgos.
Soltei meus olhos no elétrico
mar azul, cheio de músicas.
Desci na sombra das ruas,
como pelas tuas veias:
meu passo - a noite nos muros -
casas fechadas - palmeiras -
cheiro de chácaras úmidas -
sono da existência efêmera.
O vento das praias largas
mergulhou no teu perfume
a cinza das minhas mágoas.
E tudo caiu de súbito,
junto com o corpo dos náufragos,
para os invisíveis mundos.
Vi tantos rostos ocultos
de tantas figuras pálidas!
Por longas noites inúmeras,
em minha assombrada cara
houve grandes rios mudos
como os desenhos dos mapas.
Tinhas os pés sobre flores,
e as mãos presas, de tão puras.
Em vão, suspiros e fomes
cruzavam teus olhos múltiplos,
despedaçando-se anônimos,
diante da tua altitude.
Fui mudando minha angústia
numa força heroica de asa.
Para construir cada músculo,
houve universos de lágrimas.
Devo-te o modelo justo:
sonho, dor, vitória e graça.
No rio dos teus encantos,
banhei minhas amarguras.
Purifiquei meus enganos,
minhas paixões, minhas dúvidas.
Despi-me do meu desânimo -
fui como ninguém foi nunca.
Deusa dos olhos volúveis,
rosto de espelho tão frágil,
coração de tempo fundo,
- por dentro das tuas máscaras,
meus olhos, sérios e lúcidos,
viram a beleza amarga.
E esse foi o meu estudo
para o ofício de ter alma;
para entender os soluços,
depois que a vida se cala.
- Quando o que era muito é único
e, por ser único, é tácito.
*
Ilustrações de Joba Tridente - 2020
Cecília Benevides de Carvalho
Meireles (Rio de Janeiro-RJ, 1901 - Rio de Janeiro-RJ, 1964). Escritora
de verso e prosa, professora, artista plástica e jornalista. Um dos maiores
nomes femininos da literatura brasileira. Ela é responsável pela criação da
primeira biblioteca dedicada à literatura infantil, em 1934, no Rio de Janeiro.
Cecília Meireles, que aos 18 anos
publicou Espectro (1919), o seu primeiro livro de
poesia, é autora, entre vários títulos, de: Criança,
meu amor (1923), Batuque, Samba e
Macumba (1933), A Festa das Letras
(1937), Viagem (1939), Olhinhos de Gato (1940), Problemas de
Literatura Infantil (1950), Romanceiro da
Inconfidência (1953), Solombra
(1963), Poemas de Israel (1963), Ou Isto Ou Aquilo (1964). Mereceu os Prêmios:
Poesia da Academia Brasileira de Letras, pelo livro Viagem (1938),
Tradução de Obras Teatrais (1962); Jabuti de Tradução de Obra Literária pelo livro Poesia
de Israel (1963); Jabuti de Poesia, pelo livro Solombra (1964);
Machado de Assis (1965).
Para saber mais: Wikipédia: Cecília Meireles; PGL - José Paz Rodrigues: Cecília Meireles, A mais importante
tagoreana do Brasil; Scielo -
Maria Lúcia Dal Farra: Cecília Meireles: imagens femininas; EBC: Cecília Meireles; ABL: Fantasmas Clandestinos de Cecília Meireles; Filologia - André Luiz Caldas Amóra e
Tatiana Alves Soares Caldas: Viagem: A Metapoesia em Cecília Meirelles; Roteiros & Descobrimentos: A escola, a criança e a literatura infantil; BDTD - Anderson Azevedo Ferigate:
A presença de Gandhi na literatura de
Cecília Meireles; SCRIPTA: Cecília Meireles – a educadora; Revista
Decifrar - Karoline Alves Leite: Viagem e Solombra, de Cecília Meireles; Revista
Decifrar – Karoline Alves Leite: O Noturno na Poesia de Cecília Meireles e
de Ana Marques Gastão; Templo Cultural Delfos: Cecília Meireles: poeta e educadora.
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