No intervalo de um episódio de "Eu, a Patroa e as Crianças", transmitido por um desses canais mais-do-mesmo da tv a cabo, na propaganda de uma das outras atrações da emissora, apareceram dois apresentadores de um programa de comentários e sugestões de filmes, dois caras sentados num sofá e comendo pipoca. Um deles estava com uma camiseta do Batman. Não uma camiseta qualquer. A do uniforme clássico. Não uma das inúmeras variações e distorções, pós-Tim Burton, do traje do morcego, não dessas vendidas, hoje, em qualquer camelô, em qualquer loja de rodoviária.
A
clássica. Fundo cinza não muito escuro e, no peito, a elipse amarela a
circunscrever o morcego negro; concepção imortal, tal traje, do lendário
ilustrador Carmine Infantino.
Tenho
uma camiseta dessa - lembrei-me! Comprada em 1989, por ocasião do
aniversário dos 50 anos do filho mais dileto de Gotham City. O ano
chinês do morcego. Ano de muita celebração, marcado por publicações de
muitas minisséries, de excelentes graphic novels e pelo lançamento do filme Batman,
de Tim Burton, com Michael "Batman" Keaton e Jack "Curinga" Nicholson.
Camiseta oficial do cinquetenário. Com o selo de aprovação e garantia de
qualidade da própria DC Comics.
Não
tenho boa memória para detalhes. Até me lembro de ter feito isso ou
aquilo, de ter estudado em tal escola, de ter viajado para certos
lugares, das mulheres que comi etc, mas me lembro sem pormenores. As
lembranças não me vêm em imagens e sons cinematográficos de altas
definições e fidelidade, sim em ecos esparsos, em lamentos de fantasmas
não sepultados, sim em teatros de sombras, de vultos.
Não
foi assim desta vez. À visão da camiseta, a memória se projetou com
perfeição na tela quase sempre em branco da pré-velhice. Tudo estava de
volta. Eu e meu amigo Jaimão esperando por horas na fila invertebrada
que contornava quarteirões, para garantirmos nossos assentos no cine
Comodoro e assistir ao tão esperado Batman. O único cinema de
Ribeirão Preto, na época, a ter contrato de exibição com a Warner. O
único cinema em Ribeirão, hoje, a se manter em atividade no velho centro
da cidade, ainda que, por questões de sobrevivência, tenha se rendido
ao ramo do entretenimento adulto, o que lhe valeu o apelido pelo qual é
conhecido atualmente, cine Pornodoro. Todos os outros cinemas centrais -
eram mais de uma dúzia - foram abatidos pelo advento dos escrotos e
impessoais shopping centers.
Chegou-me
tudo com ofuscante nitidez. As roupas que usávamos, as conversas que
tivemos enquanto esperávamos, nossos estados de ânimo, nossas
expectativas, que beiravam uma crise de ansiedade, uma agonia da qual
chego a sentir saudades, uma vez que sentimento exclusivo de quem muito
fortemente deseja algo - há tempos não desejo a esse ponto. Uma aflição
que era filha do desejo com a falta de informação. Eram tempos
pré-internet, para o bem e para o mal.
Era
muito mais fácil as produtoras manterem segredos em torno dos filmes
antes de suas estreias, muito mais fácil jogar para o público apenas as
informações selecionadas que queriam que soubéssemos, cruéis gotas
homeopáticas que, longe de matar nossa sede, só punha um deserto ainda
mais árido em nossas gargantas. O filme estava anunciado há mais de ano,
quando do início de sua produção, e quase nada sabíamos dele. Uma
neblina e uma noite ainda mais impenetráveis que as de Gotham o
envolvia. Tudo o que tínhamos eram as poucas imagens estampadas nas
revistas do ramo e as pequenas notas de rodapé divulgadas pela
imprensa.
Lembrei-me
de tudo. Do calor que fazia no dia, dos últimos raios do sol poente a
arranhar nossas retinas - entráramos na fila pouco antes das 17 h, para
pegar a sessão das 20 h -, dos boatos que corriam pela fila de que os
lugares para a próxima sessão, a das 18h, e para a seguinte a ela, a das
20 h, já haviam se esgotado - só conseguimos lugar na sessão das 22 h.
Imagine só se, hoje, eu esperaria cinco horas por alguma coisa. Não
esperaria cinco horas numa fila nem pra comer a Scarlett Johansson.
Lembrei-me de nossas falas, de nossas previsões e especulações de como
seria o filme, de nossa tentativa - uma forma de matar o tempo - de
montar o quebra-cabeça com tão pouca informação, com tão poucas peças
disponíveis. Lembrei-me - de médico e de louco e de crítico de cinema,
todo mundo tem um pouco - de nossas certezas antecipadas da péssima
escolha de Michael Keaton para o papel do Batman e da excelente escolha
do iluminado Jack Nicholson para o papel do palhaço do crime - certezas
confirmadas com poucos minutos de projeção.
O
presente puxando-me de volta, ocorreu-me : eu tinha 22 anos à época; o
Jaimão, 19. Era o ano de 1989. A camiseta que deflagrara a
paudurescência de minha memória completará 30 anos no ano que vem, 2019.
Trinta anos. Tem a camiseta, hoje, mais idade do que eu tinha quando a
comprei.
Batman
completara 50 anos, então. Bruce Wayne adentrara à meia-idade, era um
senhor distinto, galante, conservado e em muito boa forma; eu, um jovem
universitário, inocente, puro e besta.
Ano
que vem, Batman completará 80 anos de vida, um justiceiro octogenário
que não se arriscará mais em sair para combater o crime sem verificar o
estoque de fraldas geriátricas e de Corega no seu bat-cinto de
utilidades; eu, um cinquentão acabado e vencido. É a podridão, meu
velho.
Fui
cuidar da lida. Desliguei a tv, lavei e guardei a remanescente louça da
pia, recolhi as gatas, enfim, fui me ocupar do comezinho para tentar
esquecer do passado. A imagem da camiseta, porém, não me abandonou.
Fui
ao guarda-roupas - senti-me o próprio Batman a descerrar as emperradas,
pela falta de uso, portas da bat-caverna -, escavei fundo uma das
gavetas e lá estava ela. Conservadíssima. Como se ontem eu a tivesse
retirado da loja - usei-a poucas vezes. Nenhum sinal de desbotamento ou
de ataques de traças. Guardei-a. Não a recoloquei ao fundo da gaveta,
entretanto. Deixei-a por cima. E esperei. Esperei o filho dormir, a
esposa, as gatas, a casa.
Silencioso,
imperceptível e indetectável como só o Batman sabe ser, peguei a
camiseta no guarda-roupas. Esquivo e célere, tranquei-me com ela no
banheiro. Vesti-a. Serviu-me perfeitamente. Como 1989 fosse. Naquele
momento, 1989 era!
Uma sombra dançou pelo banheiro e desceu sobre o meu semblante. Olhei-me no espelho. Não tive dúvidas. Gritei : I'm Batman! Era verdade. Em 1989, eu era o Batman. Com 22 anos, todos éramos o Batman!
Com
pesar e relutância, desvesti a camiseta (a sombra abandonou minhas
faces), devolvi-a ao guarda-roupas tão silenciosamente quanto a tirara,
voltei ao banheiro, escovei os dentes e fui me deitar. E fui me deitar.
Com
uma vontade danada e uma saudade doída de saltar e de correr pelos
telhados, de me sentar em vigília sobre as gárgulas, de esmurrar a
sempre zombeteira cara do Curinga, de jogar "o que é o que é?" com o
Charada, "cara ou coroa" com o Duas-Caras, de me atracar com a
Mulher-Gato.
Com
uma vontade filha da puta de, ao fim do expediente, na troca de turnos
da madrugada com o arrebol, no rápido roçar da Lua com o Sol na sala do
relógio do cartão de ponto, tomar uma cerveja gelada com o Comissário
Gordon.
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