Uma Cerveja com James Gordon


No intervalo de um episódio de "Eu, a Patroa e as Crianças", transmitido por um desses canais mais-do-mesmo da tv a cabo, na propaganda de uma das outras atrações da emissora, apareceram dois apresentadores de um programa de comentários e sugestões de filmes, dois caras sentados num sofá e comendo pipoca. Um deles estava com uma camiseta do Batman. Não uma camiseta qualquer. A do uniforme clássico. Não uma das inúmeras variações e distorções, pós-Tim Burton, do traje do morcego, não dessas vendidas, hoje, em qualquer camelô, em qualquer loja de rodoviária.
A clássica. Fundo cinza não muito escuro e, no peito, a elipse amarela a circunscrever o morcego negro; concepção imortal, tal traje, do lendário ilustrador Carmine Infantino.
Tenho uma camiseta dessa - lembrei-me! Comprada em 1989, por ocasião do aniversário dos 50 anos do filho mais dileto de Gotham City. O ano chinês do morcego. Ano de muita celebração, marcado por publicações de muitas minisséries, de excelentes graphic novels e pelo lançamento do filme Batman, de Tim Burton, com Michael "Batman" Keaton e Jack "Curinga" Nicholson. Camiseta oficial do cinquetenário. Com o selo de aprovação e garantia de qualidade da própria DC Comics.
Não tenho boa memória para detalhes. Até me lembro de ter feito isso ou aquilo, de ter estudado em tal escola, de ter viajado para certos lugares, das mulheres que comi etc, mas me lembro sem pormenores. As lembranças não me vêm em imagens e sons cinematográficos de altas definições e fidelidade, sim em ecos esparsos, em lamentos de fantasmas não sepultados, sim em teatros de sombras, de vultos.
Não foi assim desta vez. À visão da camiseta, a memória se projetou com perfeição na tela quase sempre em branco da pré-velhice. Tudo estava de volta. Eu e meu amigo Jaimão esperando por horas na fila invertebrada que contornava quarteirões, para garantirmos nossos assentos no cine Comodoro e assistir ao tão esperado Batman. O único cinema de Ribeirão Preto, na época, a ter contrato de exibição com a Warner. O único cinema em Ribeirão, hoje, a se manter em atividade no velho centro da cidade, ainda que, por questões de sobrevivência, tenha se rendido ao ramo do entretenimento adulto, o que lhe valeu o apelido pelo qual é conhecido atualmente, cine Pornodoro. Todos os outros cinemas centrais - eram mais de uma dúzia - foram abatidos pelo advento dos escrotos e impessoais shopping centers.
Chegou-me tudo com ofuscante nitidez. As roupas que usávamos, as conversas que tivemos enquanto esperávamos, nossos estados de ânimo, nossas expectativas, que beiravam uma crise de ansiedade, uma agonia da qual chego a sentir saudades, uma vez que sentimento exclusivo de quem muito fortemente deseja algo - há tempos não desejo a esse ponto. Uma aflição que era filha do desejo com a falta de informação. Eram tempos pré-internet, para o bem e para o mal.
Era muito mais fácil as produtoras manterem segredos em torno dos filmes antes de suas estreias, muito mais fácil jogar para o público apenas as informações selecionadas que queriam que soubéssemos, cruéis gotas homeopáticas que, longe de matar nossa sede, só punha um deserto ainda mais árido em nossas gargantas. O filme estava anunciado há mais de ano, quando do início de sua produção, e quase nada sabíamos dele. Uma neblina e uma noite ainda mais impenetráveis que as de Gotham o envolvia. Tudo o que tínhamos eram as poucas imagens estampadas nas revistas do ramo e as pequenas notas de rodapé  divulgadas pela imprensa.
Lembrei-me de tudo. Do calor que fazia no dia, dos últimos raios do sol poente a arranhar nossas retinas - entráramos na fila pouco antes das 17 h, para pegar a sessão das 20 h -, dos boatos que corriam pela fila de que os lugares para a próxima sessão, a das 18h, e para a seguinte a ela, a das 20 h, já haviam se esgotado - só conseguimos lugar na sessão das 22 h. Imagine só se, hoje, eu esperaria cinco horas por alguma coisa. Não esperaria cinco horas numa fila nem pra comer a Scarlett Johansson. Lembrei-me de nossas falas, de nossas previsões e especulações de como seria o filme, de nossa tentativa - uma forma de matar o tempo - de montar o quebra-cabeça com tão pouca informação, com tão poucas peças disponíveis. Lembrei-me - de médico e de louco e de crítico de cinema, todo mundo tem um pouco - de nossas certezas antecipadas da péssima escolha de Michael Keaton para o papel do Batman e da excelente escolha do iluminado Jack Nicholson para o papel do palhaço do crime - certezas confirmadas com poucos minutos de projeção.
O presente puxando-me de volta, ocorreu-me : eu tinha 22 anos à época; o Jaimão, 19. Era o ano de 1989. A camiseta que deflagrara a paudurescência de minha memória completará 30 anos no ano que vem, 2019. Trinta anos. Tem a camiseta, hoje, mais idade do que eu tinha quando a comprei.
Batman completara 50 anos, então. Bruce Wayne adentrara à meia-idade, era um senhor distinto, galante, conservado e em muito boa forma; eu, um jovem universitário, inocente, puro e besta.
Ano que vem, Batman completará 80 anos de vida, um justiceiro octogenário que não se arriscará mais em sair para combater o crime sem verificar o estoque de fraldas geriátricas e de Corega no seu bat-cinto de utilidades; eu, um cinquentão acabado e vencido. É a podridão, meu velho.
Fui cuidar da lida. Desliguei a tv, lavei e guardei a remanescente louça da pia, recolhi as gatas, enfim, fui me ocupar do comezinho para tentar esquecer do passado. A imagem da camiseta, porém, não me abandonou.
Fui ao guarda-roupas - senti-me o próprio Batman a descerrar as emperradas, pela falta de uso, portas da bat-caverna -, escavei fundo uma das gavetas e lá estava ela. Conservadíssima. Como se ontem eu a tivesse retirado da loja - usei-a poucas vezes. Nenhum sinal de desbotamento ou de ataques de traças. Guardei-a. Não a recoloquei ao fundo da gaveta, entretanto. Deixei-a por cima. E esperei. Esperei o filho dormir, a esposa, as gatas, a casa.
Silencioso, imperceptível e indetectável como só o Batman sabe ser, peguei a camiseta no guarda-roupas. Esquivo e célere, tranquei-me com ela no banheiro. Vesti-a. Serviu-me perfeitamente. Como 1989 fosse. Naquele momento, 1989 era!
Uma sombra dançou pelo banheiro e desceu sobre o meu semblante. Olhei-me no espelho. Não tive dúvidas. Gritei : I'm Batman! Era verdade. Em 1989, eu era o Batman. Com 22 anos, todos éramos o Batman!
Com pesar e relutância, desvesti a camiseta (a sombra abandonou minhas faces), devolvi-a ao guarda-roupas tão silenciosamente quanto a tirara, voltei ao banheiro, escovei os dentes e fui me deitar. E fui me deitar. 
Com uma vontade danada e uma saudade doída de saltar e de correr pelos telhados, de me sentar em vigília sobre as gárgulas, de esmurrar a sempre zombeteira cara do Curinga, de jogar "o que é o que é?" com o Charada, "cara ou coroa" com o Duas-Caras, de me atracar com a Mulher-Gato.
Com uma vontade filha da puta de, ao fim do expediente, na troca de turnos da madrugada com o arrebol, no rápido roçar da Lua com o Sol na sala do relógio do cartão de ponto, tomar uma cerveja gelada com o Comissário Gordon.

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