O velho professor, que há tempos ultrapassou os limites da exaustão e do desânimo - que foi trespassado por eles, em verdade -, que há tempos desenvolveu a arte de respirar o vácuo e a eterna derrota, trôpego e coxo, arrasta-se para o fim de mais um ano letivo, de mais um ano de nada; se muito, de indignidade.
Em
reunião pedagógica, recebe a solicitação de seu superior hierárquico
para que proceda em um urgente plano de recuperação : salvar da
reprovação o quanto mais puder de almas analfabetas, almas já
condenadas, por elas mesmas, a vagarem, depois que saírem da escola, num
purgatório, num limbo de subemprego e reprodução de suas misérias, dos
mais variados tipos. Podem não acreditar os que estão de fora do chamado
"processo educacional", mas muitos optam, sim, pela continuidade de
suas misérias, pela comodidade delas. Muito das agressões - sejam
físicas ou verbais - sofridas pelo professor hoje em sala de aula vêm
disso : do professor, muitas vezes, querer tirar o aluno de sua
confortável miséria, e ele reage violentamente.
O
velho professor anui. Não exatamente sem força para se opor, mas sem
esperanças de que sua contrariedade faça algum efeito, de que seja, de
fato, sequer ouvida. Preencherá, pois, a papelada burocrática. Escreverá
na ficha quais competências e habilidades, quais saberes e fazeres,
quais conteúdos inúteis sua medida emergencial contemplará. Fará a
revisão solicitada. Ainda que o termo "revisão", no atual contexto
escolar, soe-lhe de uma total inexatidão. Uma vez que pressupõe uma
antevisão, uma visão primeira do assunto : revisão.
Não
que o velho professor, dentro de suas mínimas chances e de seus
exangues recursos e esforços, não tenha trazido à luz e exposto a
matéria de sua competência. Isso é que não. Ele o fez. Certamente que o
fez. Com galhardia, ele o fez. Mas daí à sala ter lhe dado olhos,
ouvidos, atenção e crédito, interpõe-se uma grande distância.
Uma
parte da sala, sempre com seus fones de ouvido e a verificar e a
responder mensagens em seus celulares em língua pictográfica e gutural;
outra parte, a dormir por sobre as carteiras e as mochilas e os
imaculados cadernos, chamados à inconsciência por seus organismos para
reporem o déficit de sono da noite anterior, passada em olhos de coruja
vidrados em jogos virtuais e/ou pornografia e/ou redes sociais - alguns
derrubados pela maconha matinal de todos os dias; uma outra parte da
sala, finalmente, olha para o professor; para ele, não, através dele,
sem prestar-lhe real atenção, sem entender sequer o vocabulário básico
do velho professor, quanto mais entender os meandros de seu raciocínio,
olham para ele como a uma ruína de uma antiga civilização.
Revisão? Do que nunca foi visto, embora exaustivamente mostrado?
Ainda
assim, o velho professor respira fundo e segue. Diz à sala do período
de revisão, da importância pedagógica do mesmo, diz que fará, antes, uma
avaliação diagnóstica para detectar os pontos de maior deficiência e,
posteriormente, solucioná-los. Pede que peguem seus cadernos. Passará
algumas questões para nortear a atividade. Informa aos alunos do
conteúdo em seus cadernos a ser consultado na resolução das mesmas.
Passa as questões, diz que comecem e que estará em sua mesa manca, à
disposição para qualquer dúvida que possa surgir no decorrer da
realização da atividade.
Cala-se,
aliviado. Senta-se. Observa a sala às voltas com a atividade que
acabara de propor : uma parte da sala, sempre com seus fones de ouvido e
a verificar e a
responder mensagens em seus celulares em língua pictográfica e gutural;
outra parte, a dormir por sobre as carteiras e as mochilas e os
imaculados cadernos, chamados à inconsciência por seus organismos para
reporem o déficit de sono da noite anterior, passada em olhos de coruja
vidrados em jogos virtuais e/ou pornografia e/ou redes sociais - alguns
derrubados pela maconha matinal de todos os dias; a outra parte,
finalmente, começa a escrever, mais a vasculhar por fragmentos de textos
que pareçam se encaixar à questão pedida (não raro, o velho professor
vê alunos "pesquisando" em cadernos e apostilas de outras matérias,
procurando respostas de matemática no caderno de geografia, de história
no de biologia etc), mais a desenhar, a bem da verdade, como quem copia
indecifráveis hieróglifos sob um papel de seda.
O velho professor senta-se e espera pelas dúvidas, que sabe que não virão. Onde não há vontade de pensamento, não há dúvida.
Para distrair-se até o soar do sinal, o velho professor começa a ler um livro emprestado por uma colega, Aforismos para a Sabedoria de Vida, de Arthur Schopenhauer, o alemão ranzinza e pessimista.
Procurar no pessimismo de Schopenhauer um anódino para o seu cotidiano. Começa a ler. Uma página, duas, vinte e duas. Pessimista, o Schopenhauer? Sempre superestimados, os tais filósofos, ainda mais se alemães.
Pessimismo? Frente ao contexto do velho professor, um mar de rosas, isso sim, um mar de rosas a visão Schopenhaueriana.
O tão afamado pessimismo de Schopenhauer?
Sabia de nada, o inocente e ingênuo alemão.
O velho professor senta-se e espera pelas dúvidas, que sabe que não virão. Onde não há vontade de pensamento, não há dúvida.
Para distrair-se até o soar do sinal, o velho professor começa a ler um livro emprestado por uma colega, Aforismos para a Sabedoria de Vida, de Arthur Schopenhauer, o alemão ranzinza e pessimista.
Procurar no pessimismo de Schopenhauer um anódino para o seu cotidiano. Começa a ler. Uma página, duas, vinte e duas. Pessimista, o Schopenhauer? Sempre superestimados, os tais filósofos, ainda mais se alemães.
Pessimismo? Frente ao contexto do velho professor, um mar de rosas, isso sim, um mar de rosas a visão Schopenhaueriana.
O tão afamado pessimismo de Schopenhauer?
Sabia de nada, o inocente e ingênuo alemão.
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