Quem já ouviu dizer de um rebanho de gatos?


Sexta-feira. Dia de comer pastel na feira com o filho, na barraca da japonesa. Ele pede sempre o de carne com queijo; eu, o de bacalhau. Muito bom, o bacalhau da japonesa. Nossos últimos pastéis de feira até a chegada das próximas férias escolares.
Segunda-feira, conduzido coercivamente de volta ao Inferno. Que só nos dá esparsas férias para que continue com o seu poder sobre nós, para que se mantenha como Inferno. Não nos desse, o Inferno, pequenas folgas para vermos que há melhores plagas e climas, o tomaríamos como única realidade possível, perderíamos a esperança de escapar dele, deixaríamos de sofrer, portanto. Porque é disso de que se alimenta o Inferno : do sofrimento causado pela esperança vã de dele fugirmos.
Então, antes mesmo  de nossos pastéis estarem prontos, uma voz, um chamamento às minhas costas. Não do Inferno - ainda. De década, década e meia atrás.
- Homem sem fé! - a voz ecoou e evocou.
A gorda comendo de boca aberta olhou pra mim, também a japonesa, o motoboy e a velha cheia de varizes.
- Dê cá um abraço, ímpio colega.
Levantei e o abracei. Valtinho Barba. Que não é o seu real sobrenome, sim epíteto cuja origem se faz evidente à primeira vista. Reza a lenda que nunca ninguém, que ainda tenha idade para estar vivo, viu o Valtinho sem sua basta e cerrada barba. Acho que nem o Miele uso barba por tanto tempo, ininterruptamente. Nem a Cláudia Ohana.
Valtinho Barba não fez, exatamente, faculdade comigo. Fazia outro curso, o de Biomédicas, mas por conta de umas dependências em Química e Cálculo I que ele havia pego, cursou-as conosco, os da Biologia.
De cara, apegou-se a mim - tenho esse poder sobre os desajustados. Aferrou sua companhia à minha a partir do momento em que me descobriu ateu. Como ele. 
- Esse cara é igual a mim - ele dizia, batendo nas minhas costas, quando já meio alto de cerveja, nos churrascos, nas chopadas da faculdade, no finado bar do finado Ali.
Não somos iguais, Valtinho Barba e eu. Poucas pessoas poderiam, ainda que muito se esforçassem, ser mais distintas que nós. Ele assim julgava apenas porque éramos, ambos, ateus. Éramos, ele assegurava, gêmeos univitelinos em descrença separados no nascimento. Nunca o desmenti. Mas dizer que duas pessoas são iguais tão-somente por serem ateias é o mesmo que dizer que todas as mulheres são iguais, simplesmente, por serem mulheres; todos os negros, por serem negros; todos os boiolas, por serem boiolas; todos os são-paulinos, por serem boiolas.
Valtinho Barba - e isso é a mais pura verdade -, só para dar uma ideia do tipo de louco que eu, involuntariamente, cativo - é mesmo um dom nato -, trabalhou por muitos anos como maquiador de funerária. - Nunca vi Deus, o Espírito Santo nem anjo nenhum vir buscar a alma de ninguém - ele dizia.
Pediu um pastel de palmito para a japonesa e puxou uma banqueta para o meu lado. Perguntou-me da vida. Falei que me casei, apresentei-lhe o meu filho e disse que continuo no hoje poço de areia movediça que outrora foi o nobre ofício do magistério.
Ele nunca se casou. Juntou os trapos um par de vezes. Tudo doida, malucas de pedra, ele me disse à guisa de explicação para a sua solteirice. Depois de formado, trabalhou por muito tempo como biomédico em um laboratório de análises clínicas, mas era pouca a paga para ficar o dia todo fuçando a merda alheia. Até que, em 2011, a avó paterna morreu e, na impossibilidade do já falecido pai do Valtinho receber os espólios da mãe, de quem era filho único, Valtinho Barba foi herdeiro único e direto da velha. Herdou uma propriedade no centro da cidade, um pequeno prédio de três andares com oito apartamentos. Valtinho passou a morar em um deles e a alugar os outros sete. Renda mais que o suficiente para ele levar a vida na flauta. Mas ainda faz uns bicos de vez em quando, me disse. Não perguntei de que tipo. Continuará, vez ou outra, a embelezar defuntos? Terá Valtinho Barba maquiado a sua própria avó, tive vontade de perguntar.
- Como anda essa vida de ateu? - perguntou.
- Acho que da mesma maneira que a vida de quem acredita em deus, uma vez que não faz diferença nenhuma acreditar ou não na hora de pagar as contas.
Valtinho Barba riu. Disse, "acho que você não acredita nem no ateísmo".
Desconfio do ateísmo de ateus feito o Valtinho. Ateus que se apegam à sua descrença e a exaltam como sendo sua melhor qualidade, feito os religiosos o fazem com as suas fés.
Seguindo no assunto que - na visão dele - nos une, Valtinho Barba falou que, com o tempo livre garantido pelos aluguéis da avó, tentou fundar uma organização de ateus aqui em Ribeirão Preto. Aos moldes da ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), da qual é sócio desde a fundação. Uma espécie de franquia, uma subsidiária, uma retransmissora da ATEA aqui na chamada capital da cultura - da monocultura; no passado, a do café; hoje, a da cana-de-açúcar.
Falhou em seu intento. Ribeirão é provinciana demais, um povinho sem educação nem cultura, não tem gente esclarecida o bastante para serem ateus, ele me disse.
Com a primeira parte, que Ribeirão Preto é uma puta duma província de chucros, eu concordo, mas que não haja ateus em número suficiente para uma associação, ou que é necessária certa dose de leitura e ilustração para ser um ateu, eu discordo.
Ateu, nasce. Não se faz, não se converte. Eu já era ateu antes mesmo de ir pra escola, antes de percorrer as primeiras linhas da Caminho Suave. Aliás, foi na escola, aos meus 12 anos, que eu "descobri", que me falaram que eu era ateu. Falaram-me em tom reprovativo e acusatório. Eu gostei. Gostei do termo "ateu". Não o achei tão mau, depreciativo. Se algum desmiolado religioso quisesse chegar perto de conseguir me ofender, teria que caprichar muito mais.
Também divirjo de Valtinho Barba de que não haja ateus em grande número em Ribeirão Preto. Creio que eles existam nas mesmas proporções que em outras grandes cidades. Com certeza, há muitos ateus por aqui.
A questão - e a grande falha no projeto do desocupado Valtinho Barba - é que ateu que é ateu, ateu de nascença, ateu das antigas, não gosta de se reunir em associações, clubes, agremiações, ou qualquer outro tipo de rebanho.
Ateus de verdade não gostam do bando, não gostam do gregário, de congregar, de comungar em torno de um interesse em comum. Se gostássemos, não seríamos ateus, seríamos religiosos. 
Por isso, desconfio muito da autenticidade dessas associações ateístas, desses neoateuzinhos, desses apóstolos de Richard Dawkins (a quem respeito muitíssimo como o grande geneticista que é, mas em nada como o Messias do ateísmo em que se tornou), desses ateus de boutique que acabam por fundar seitas em torno de uma suposta descrença. Destes, tenho certeza, é só questão de tempo até acharem um deus e uma religião que lhes convenham.
Nós, os verdadeiros ateus, somos feito os gatos. Somos seres de hábitos, caminhos e de pensamento independentes, livres. Embora acatemos e nos curvemos, por mera questão de sobrevivência, a ordens e hierarquias, não reconhecemos, de fato, legítimos líderes e lideranças. Olhamos para eles com condescendência, com, nem sempre bem disfarçado, enfado, pois, muitas vezes, deles dependem nossa água fresca e nossa ração na tigela. Só por isso. Gatos não reconhecem machos alfa, beta ou ômega.
Alguém já ouviu dizer de um rebanho de gatos? De uma "matilha" de felinos? Não é possível arrebanhá-los; ou não seriam gatos, seriam gado, ovelhas, andorinhas, patéticos cachorrinhos de madame. O mesmo vale para nós, ateus. Não é possível nos arrebanhar, ou não seríamos ateus, seríamos devotos pagadores de dízimo e papadores de hóstia.
Somos como os gatos. Andamos sozinhos. Sem ninguém para amparar nossos tropeços e nossos tombos - e eles são muitos. Mas caímos sempre de pé. Nunca deitados no divã de algum psicopicareta. Tivemos que aprender desde cedo a cair de pé. Sempre soubemos que não há rede de segurança para nos amparar. Não há deus.
Somos feito os gatos. Cagamos para o mundo. E temos a decência de lamber e de limpar nossos próprios cus. Não creditamos nossas cagadas a ninguém.
Valtinho Barba anotou meu telefone e meu e-mail. Futuramente, combinar uma gelada.

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