(ou de como a paralaxe cognitiva deixa a lógica vertiginosa).
Originalmente postado em: Pensando a Dor
Assistir este "documentário" foi uma experiência, devo admitir. Para além das obviedades, ou seja, o fato de ser claramente um arquivo político panfletário repleto de imprecisões, mas que, tecnicamente, é muito bem produzido, a película de Petra Costa me suscitou intensas reflexões acerca de algumas questões, as quais resolvi externar neste ensaio. Neste sentido, meu raciocínio girará em torno de cinco pontos centrais: 1º) a questão narrativística; 2º) a questão retórica; 3º) a formação do imaginário; 4º) o fenômeno da paralaxe cognitiva e 5º) a construção do saber histórico.
Em primeiro lugar, se apresenta a questão da narrativa. O debate relacionado ao conceito de narrativa na ciência histórica tornou-se, em especial nas últimas décadas, questão latente nos debates acerca do aspecto teórico e metodológico do saber histórico, ainda mais após as contribuições legadas por Hayden White ao debate. Não cabe aqui, contudo, dar cabo da discussão, mas apenas trazer à baila alguns pontos de desacordo que foram postulados posteriormente aos textos de White, colocando em xeque tal proposta e apontando os limites e perigos da narrativização excedente da ciência histórica.
Em segundo lugar, temos a questão retórica, sob a qual a narrativa torna-se elemento central no processo de formação do devir histórico. Um discurso, segundo a leitura de Olavo de Carvalho de Aristóteles, forma-se a partir da interlocução de quatro etapas, sendo estas: a poética, a retórica, a dialética e a lógica. Tendo isto em consideração, a proposta de formação de uma narrativa (ou discurso) se insere nesse contexto, em que uma determinada obra documental (no caso em questão, de cunho áudio-visual) se orienta a partir do perspectivismo direcionado a partir da legitimação de um olhar determinado do processo histórico.
Em terceiro lugar, se dá o processo de formação do imaginário, que está aliado aos dois fatores anteriores, à medida que é a ação da narrativa, marcadamente estimulada por um aspecto sensorial intuitivo e, portanto, poético, se interrelaciona com a retórica, conduzindo a legitimação de uma tal perspectiva, despiciendas as especificidades intrínsecas de coerência interna dos períodos retratados. Nesse sentido, o imaginário em torno de um momento histórico se sedimenta, mesmo que, por vezes, não possua plena base factual. É nesse sentido que, portanto, o mundo contemporâneo advoga pela retórico em detrimento da lógica.
Em quarto lugar, coloca-se o fenômeno da paralaxe (dissonância) cognitiva, extensamente estudada e pesquisada por psiquiatras ao redor do mundo. Cabe-nos, contudo, devido ao teor (político) do objeto de análise aqui referido, compreender como este fenômeno se dá no campo da retórica política e, por fim, de como isso se dá no processo de construção do saber histórico. A paralaxe cognitiva, enquanto fenômeno, pode ser conceituada como o alargamento (ou mesmo inversão) do eixo de construção teórica de um determinado âmbito e o eixo da experiência real dos indivíduos no mundo. Nesse sentido, ela representa o ponto de ruptura da formação do discurso (ao menos de um discurso coerente), incitando imprecisões no processo de construção do saber histórico.
Em quinto e último lugar, insurge a importante reflexão que todos os historiadores sérios deveriam fazer, no que tange a produção de conhecimento da nossa área de atuação, a fim de que a ciência histórica não se perca em desmandos de um corpus ideológico, extremamente engessado em seus vícios e perca, por ela mesma, sua legitimidade, tornando-se, a própria História, o maior exemplo de revisionismo que podemos encontrar.
Feitas estas "notas introdutórias", é preciso entrar no porquê destas serem importantes para entendermos os contornos diversamente abundantes deste documentário. A relação entre obras de áudio-visual e a história vem sendo estudada de maneira profícua nas últimas décadas, tendo tal debate ganhado relevância ao redor do debate travado por Marc Ferro, pertencente à terceira geração dos Annales. Muitos autores, de distintas maneiras, interpretaram e deram suas contribuições para o debate, ao qual não é minha intenção expor aqui. Contudo, a fim de ensejar melhor a reflexão sobre o tema, a categoria de escritura fílmica trabalhada pelo historiador, ensaísta e romancista americano Robert Rosenstone representa uma importante ferramenta para pensarmos os contornos da obra em questão, vide que, na proposta de Rosenstone, um cineasta pode, também, ser um historiador, dando ao filme um caráter de documento histórico propriamente dito, o que se dissocia da perspectiva de Ferro, que compreendia que o filme apenas trazia resquícios do período histórico em que foi produzido. Dito isto, e lembrando da fatídica sentença, trazida no documentário, proferida pela ex-presidente Dilma Rousseff, de que "todos seremos julgados pela História", as coisas começam a se relacionar.
Quando ela utilizou-se desta expressão, ela não foi leviana (alô, aspirador!), pois ela sabia muito bem o que estava em jogo ali. O fato da exclusividade de muitos dos momentos retratados por Petra em seu "documentário" e a facilidade e proximidade explícita que muitas imagens logram à narrativa já demonstram que tudo isto já estava sendo esquematizado. Não é a primeira e muito menos a última vez que se proporá uma reescrita da História desta forma, pautada numa narrativa política. Pelo menos, ressalva seja feita, o filme assume o seu lado. O problema, no entanto, é que a mesma coragem em posicionar-se não se estendeu para o trato honesto com os dados deixados pelo devir histórico. É por essas e outras que, pessoalmente, vivo salientando a falta de acuidade dos profissionais ligados à História do Tempo Presente.
Quanto ao conteúdo do "documentário", não há como abordar todos os pontos destoantes, devido a imensidão da presença destes. De toda forma, essa não é, desde o início, a minha proposta. Como bem apontei no início deste ensaio, a reflexão deste ensaio está orientada para outra direção. O ponto de celeuma da discussão, ao menos para mim, está na proposta da narrativa em si. Tudo é muito bem moldado de modo a instigar a emoção do público que assiste à película, construindo um culto à personalidade catártico que acompanha - como tudo relacionado à esquerda - a insistência em polarizar o mundo na dialética hegeliana do master and servant. Até mesmo as concessões ("críticas" - e ponha aspas nisso) feitas pelo documentário são apenas uma cortina de fumaça, sob a qual eles constroem uma imagem de isenção que não existe. O próprio vício terminológico adotado pela narradora, a própria Petra Costa, já demonstra as intencionalidades das distorções cometidas pelo trato dos acontecimentos, desvelando o não-dito pelo dito (para usar de um dos princípios da linguística). E todo historiador honesto compreende que, ao analisar um acontecimento histórico, é extremamente importante que se apresente os elementos que contrariam a posição pré-estabelecida do analista, mesmo que isso seja feito para solidificar esta posição. E isto, sem dúvida, o documentário não faz.
Para concluir, por fim, fica a problemática que aqui me propus apresentar: quando a formulação de uma narrativa, dentro da construção do saber histórico, é levada à cabo pela retórica pura e relega à lógica um papel de coadjuvante, temos a subversão dos fatos, privilegiando o eixo da base teórica e, por fim, estabelecendo uma reescrita dos eventos sob a égide do fenômeno da paralaxe cognitiva. No caso do "documentário" em questão isto fica bem evidente. Se trata de uma tentativa, de intenção poética, de promover uma leitura da história para se perpetuar com o tempo, traçada por fins político-ideológicos. Sua preocupação com a honestidade intelectual, portanto, é praticamente nula, incorrendo em constantes ilações e teses conspiracionistas durante praticamente todo o tempo de tela, que só agradarão, de fato, quem está engessado nos vícios da narrativa política moldada por esta perspectiva, mas que, enquanto ferramenta documental da história, traz em seu conteúdo uma nulidade sem precedentes, que serve-nos - e foi o que pretendi fazer aqui - apenas para refletir sobre como se constitui a formação destes conflitos. O perigo real, contudo, é que ela (a narrativa) está aí e muitos compromissados com sua ideologia a elevarão ao patamar de verdade histórica. Cabe-nos, enquanto agentes da História, desvelar os acontecimentos de maneira séria, compromissados com a verdade, pois como bem ressaltava Chesterton: "se a verdade é relativa, é relativa em relação a quê?".
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