António Gedeão: Seis Poemas
publicados originalmente por Joba Tridente
no blog literário Falas ao Acaso.
Uma
das melhores coisas da web é proporcionar (para quem a busca,
evidentemente!) a expansão do
conhecimento. Não fosse a internet, não sei se haveria tempo de conhecer
a desconcertante poesia do escritor português António Gedeão, que
atropelou os meus sentidos quando pesquisava dados para a biografia de um outro
autor e me deparei com um artigo cujo título me chamou a atenção: Pode Haver
Física na Poesia?
A curiosa
matéria, publicada originalmente na revista Alexandria Revista de Educação
em Ciência e Tecnologia, de novembro de 2008, assinada por M. C.
Barbosa-Lima, falava do emérito professor Rómulo Vasco da Gama de Carvalho
(1906-1997), formado em Ciências Físicas e Químicas, colaborador de diversas
revistas científicas, que se ocupava em fazer seus alunos não apenas perceber
os fenômenos mas pensar sobre eles..., citando um trecho do seu artigo “Sobre
a correlação entre a Matemática e a Física no ensino liceal”, publicado na Gazeta de Matemática, nº.
31, de 1947: “Os alunos só “acreditam” que um problema de Física está certo
quando, na hipótese de obterem um resultado final por meio de um cociente, o
resto deste seja zero. Tudo aliás se conjuga para que o erro se mantenha e
prolongue: o ensino da Matemática, os problemas [...] são propositadamente
escolhidos [...] de modo que tudo se resolva sem o menor esforço. Isto é deveras
deseducativo porque afasta completamente a escola da vida”.
Barbosa-Lima lembra que, aos 50 anos,
com o pseudônimo António Gedeão, ele publicou seu primeiro livro: Movimento
Perpétuo (1956) e ilustra a matéria com os arrebatadores poemas Máquina
do Mundo; Catedral de Burgos e Poema de ser ou não ser,
publicados em Obras Completas de António Gedeão (1990). E eu digo que
selecionar poemas de António Gedeão para uma única postagem é tarefa
árdua. Então, assim, de olhos fechados, além dos clássicos Lágrima de Preta
, Poema para Galileo e Pedra Filosofal, pincei da antologia Poemas
Escolhidos - António Gedeão, organizada por ele: Calçada
de Carriche, Lição sobre a Água e
Poema do Gato.
LÁGRIMA
DE PRETA
António
Gedeão
Encontrei
uma preta
que
estava a chorar,
pedi-lhe
uma lágrima
para
a analisar.
Recolhi
a lágrima
com
todo o cuidado
num
tubo de ensaio
bem
esterilizado.
Olhei-a
de um lado,
do
outro e de frente:
tinha
um ar de gota
muito
transparente.
Mandei
vir os ácidos,
as
bases e os sais,
as
drogas usadas
em
casos que tais.
Ensaiei
a frio,
experimentei
ao lume,
de
todas as vezes
deu-me
o que é costume:
nem
sinais de negro,
nem
vestígios de ódio.
Água
(quase tudo)
e cloreto de sódio.
CALÇADA
DE CARRICHE
António
Gedeão
Luísa
sobe,
sobe
a calçada,
sobe
e não pode
que
vai cansada.
Sobe,
Luísa,
Luísa,
sobe,
sobe
que sobe
sobe
a calçada.
Saiu
de casa
de
madrugada;
regressa
a casa
é
já noite fechada.
Na
mão grosseira,
de
pele queimada,
leva
a lancheira
desengonçada.
Anda,
Luísa,
Luísa,
sobe,
sobe
que sobe,
sobe
a calçada.
Luísa
é nova,
desenxovalhada,
tem
perna gorda,
bem
torneada.
Ferve-lhe
o sangue
de
afogueada;
saltam-lhe
os peitos
na
caminhada.
Anda,
Luísa.
Luísa,
sobe,
sobe
que sobe,
sobe
a calçada.
Passam
magalas,
rapaziada,
palpam-lhe
as coxas,
não
dá por nada.
Anda,
Luísa,
Luísa,
sobe,
sobe
que sobe,
sobe
a calçada.
Chegou
a casa
não
disse nada.
Pegou
na filha,
deu-lhe
a mamada;
bebeu
da sopa
numa
golada;
lavou
a loiça,
varreu
a escada;
deu
jeito à casa
desarranjada;
coseu
a roupa
já
remendada;
despiu-se
à pressa,
desinteressada;
caiu
na cama
de
uma assentada;
chegou
o homem,
viu-a
deitada;
serviu-se
dela,
não
deu por nada.
Anda,
Luísa.
Luísa,
sobe,
sobe
que sobe,
sobe
a calçada.
Na
manhã débil,
sem
alvorada,
salta
da cama,
desembestada;
puxa
da filha,
dá-lhe
a mamada;
veste-se
à pressa,
desengonçada;
anda,
ciranda,
desaustinada;
range
o soalho
a
cada passada;
salta
para a rua,
corre
açodada,
galga
o passeio,
desce
a calçada,
desce
a calçada,
chega
à oficina
à
hora marcada,
puxa
que puxa,
larga
que larga,
puxa
que puxa,
larga
que larga,
puxa
que puxa,
larga
que larga,
puxa
que puxa,
larga
que larga;
toca
a sineta
na
hora aprazada,
corre
à cantina,
volta
à toada,
puxa
que puxa,
larga
que larga,
puxa
que puxa,
larga
que larga,
puxa
que puxa,
larga
que larga.
Regressa
a casa
é
já noite fechada.
Luísa
arqueja
pela
calçada.
Anda,
Luísa,
Luísa,
sobe,
sobe
que sobe,
sobe
a calçada,
sobe
que sobe,
sobe
a calçada,
sobe
que sobe,
sobe
a calçada.
Anda,
Luísa,
Luísa,
sobe,
sobe
que sobe,
sobe a calçada.
PEDRA
FILOSOFAL
António
Gedeão
Eles
não sabem que o sonho
é
uma constante da vida
tão
concreta e definida
como
outra coisa qualquer,
como
esta pedra cinzenta
em
que me sento e descanso,
como
este ribeiro manso
em
serenos sobressaltos,
como
estes pinheiros altos
que
em verde e oiro se agitam,
como
estas aves que gritam
em
bebedeiras de azul.
Eles
não sabem que o sonho
é
vinho, é espuma, é fermento,
bichinho
álacre e sedento,
de
focinho pontiagudo,
que
fossa através de tudo
num
perpétuo movimento.
Eles
não sabem que o sonho
é
tela, é cor, é pincel,
base,
fuste, capitel,
arco
em ogiva, vitral,
pináculo
de catedral,
contraponto,
sinfonia,
máscara
grega, magia,
que
é retorta de alquimista,
mapa
do mundo distante,
rosa-dos-ventos,
Infante,
caravela
quinhentista,
que
é Cabo da Boa Esperança,
ouro,
canela, marfim,
florete
de espadachim,
bastidor,
passo de dança,
Colombina
e Arlequim,
passarola
voadora,
pára-raios,
locomotiva,
barco
de proa festiva,
alto-forno,
geradora,
cisão
do átomo, radar,
ultra-som,
televisão,
desembarque
em foguetão
na
superfície lunar.
Eles
não sabem, nem sonham,
que
o sonho comanda a vida.
Que
sempre que um homem sonha
o
mundo pula e avança
como
bola colorida
entre as mãos de uma criança.
LIÇÃO
SOBRE A ÁGUA
António
Gedeão
Este
líquido é água.
Quando
pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida
a vapor,
sob
tensão e alta temperatura,
move
os êmbolos das máquinas que, por isso,
se
denominam máquinas de vapor.
É um bom dissolvente.
Embora
com excepções mas de um modo geral,
dissolve
tudo bem, ácidos, bases e sais.
Congela
a zero graus centesimais
e
ferve a 100, quando à pressão normal.
Foi
neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob
um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu
a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.
POEMA PARA GALILEO
António Gedeão
Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha
Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada
Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della
Signoria…
Eu sei… Eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.
Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar – que disparate, Galileo!
– e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação –
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo
da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.
Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os
lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das
estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas – parece-me que estou a
vê-las –,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era
tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento,
livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste
pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de
braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens
ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa
do quadrado dos tempos.
POEMA
DO GATO
António
Gedeão
Quem
há-de abrir a porta ao gato
quando
eu morrer?
Sempre
que pode
foge
prá rua,
cheira
o passeio
e
volta pra trás,
mas
ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre
do gato!)
mia
com raiva
desesperada.
Deixo-o
sofrer
que
o sofrimento tem sua paga,
e
ele bem sabe.
Quando
abro a porta corre pra mim
como
acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe
ao colo e acaricio-o
num
gesto lento,
vagarosamente,
do
alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele
olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos
semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.
Repito
a festa,
vagarosamente,
do
alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele
aperta as maxilas,
cerra os olhos, abre as narinas,
e
rosna,
rosna,
deliquescente,
abraça-me
e
adormece.
Eu
não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando
eu morresse?
*
ilustrações.joba.tridente.2019
António
Gedeão, o duplo de
Rómulo Vasco da Gana de Carvalho (Lisboa – PT: 24.11.1906 - 19.02.1997), é um
dos grandes nomes da literatura portuguesa contemporânea. Já Rómulo foi
químico, pedagogo, professor de física e química, articulista científico e que,
por sua relevante obra de contribuição científica, teve a data do seu
nascimento adotada como Dia Nacional da Cultura Científica, em Portugal. António
Gedeão, que também se enveredou pelo teatro, publicou Movimento Perpétuo, seu
primeiro livro de poesia, em 1956. No 4º Centenário do nascimento de Galileo
Galilei, em 1964, escreveu Poema para Galileo, que foi traduzido para o italiano por Roberto
Barchiesi. Alguns de seus poemas, como Pedra Filosofal, foram musicados e interpretado por Manuel Freire, entre
outros. A sua obra, que fala da inquietude e inquietação de um povo oprimido durante
os anos de ditadura em Portugal, também inspirou o compositor José Nisa, que traz
no álbum Fala do Homem Nascido o célebre poema Lágrima de Preta. Aliás, no YouTube, há inúmeros vídeos com interpretações
musicais e de poemas de António Gedeão, que é autor de poesia: Movimento
Perpétuo (1956); Teatro do Mundo (1958); Declaração de Amor
(1959); Máquina de Fogo (1961); Poesias Completas (1964);
Linhas de Força (1967); Poemas Póstumos (1984); Poemas
dos textos (1985); Novos Poemas Póstumos (1990/1997/2002); Poesias
completas: 1956-1967 (1990); Poemas escolhidos (1997/1999/2001/2002/2004);
teatro: RTX 78/24 (1978); História Breve da Lua (1981); ensaio:
Os Poetas Falam de Poesia (1962); O Sentimento Científico em Bocage
(1965); No Cinquentenário da Morte de Guerra Junqueiro (1973); Ay
Flores, Ay flores do verde pino (1975); Versos ao Duque de Bragança do
poeta russo Sumarokov (1988); Homenagem a Cesário Verde Colóquio
(1988); O Texto Poético Como Documento Social (1994); ficção: Bárbara
Ruiva (1942); A poltrona e outras novelas (1973)..., além de
diversos artigos científicos.
Para
saber mais: Biblioteca
Nacional: António é o meu nome; Site Oficial: Rómulo de Carvalho/António Gedeão;
100 anos: Rómulo de Carvalho/António Gedeão;
Máquina de Fogo: Poesia de António Gedeão; Revista Caliban: Do Ofício Poético como Alquimia; Triplo V: António Gedeão: uma voz em perpétuo
movimento; Ciência
em Portugal: Físico e Poeta; Universidade do Porto: Rómulo de Carvalho; citi.pt: Poemas de António Gedeão; Sol.Sapo:
‘Há quem me diga que o meu pai é considerado um poeta menor’; Publico PT: Rómulo de Carvalho, ou a importância
de se chamar António;
Academia Edu: Poesia Científica ou Ciência Poética?
Um encontro entre António Gedeão e Paul Nougé; Fili D’Aquilone: António Gedeão; Lusofonia Poética: Biografia de António Gedeão/Rómulo
Carvalho; Escritas.org:
António Gedeão; Citador: António Gedeão; Antonio Miranda: António Gedeão; Banco de Poesia: António Gedeão revela os simples
mistérios da Pedra Filosofal; Radio Observador: António Gedeão, o poeta que veio do
fundo dos tempos morreu há 20 anos; RTP Ensina: António Gedeão, experiências feitas
poesia; YouTube: Pedra Filosofal poema musicado de António Gedeão; YouTube: Pedra Filosofal – intérprete: Manuel Freire; YouTube: Lágrima de Preta – intérprete: Adriano Correia de Oliveira; YouTube: Poemas das Árvores de António Gedeão; YouTube: Poema para Galileo – intérprete: Mário Viegas.
0 Comentários