Duas e meia da manhã. Rubens acaba de preparar a quinta dose de vodka-tônica. Olha para o fundo da garrafa e vê que ainda há conteúdo para uma sexta dose, mas não para uma sétima; e Rubens não gosta de números pares. Decide que será a última da noite.
Uma noite
sem foda. Uma noite de foda certa e garantida; até horas atrás. Como se
diz no jargão futebolístico, Rubens chutou a foda pra fora de frente pro
gol.
Pega a vodka e vai se sentar à sacada do apartamento, mirar a noite e a rua.
O ser humano, pensa Rubens - e desde lá com o nosso tataravô Homo habilis
- é o único animal que aprendeu a confeccionar ferramentas. Daí em
diante, acredita Rubens, o homem passou a ver o mundo de outra forma.
Para o homem, o mundo passou a ser uma grande caixa de ferramentas; a
Terra, o setor de bricolagem da galáxia.
Passou a
olhar para tudo como potenciais ferramentas, utilitários. E a desprezar
tudo aquilo que não conseguia destinar a uma finalidade, a uma função.
Se uma
pedra não pudesse ser lascada para se transformar numa ponta de lança,
ou se não gerava faíscas ao ser colidida com outra, ele não mais se
interessava por ela. Ele nunca mais olhou para uma pedra pelas belas
formas, cores e relevos que ela pudesse assumir. Nunca mais se sentou à
beira de um córrego para ver os seixos rolando e dando cambalhotas nas
corredeiras. Nunca mais contemplou um cristal de rocha só pelo brilho e
pela exata simetria, para simplesmente se deixar banhar por sua calma
rutilância.
Se uma
árvore não lhe fosse madeira para suas construções, ou para suas
fogueiras, ela também não mais lhe interessava. Ele nunca mais se deitou
à sombra de um ipê ou de uma paineira em flor a admirar a coreografia
marcial das abelhas e outros polinizadores.
Com o tempo, ele próprio fez-se em ferramenta. Uma ferramenta de fazer ferramentas.
Fez
ferramenta de suas interações com outras ferramentas. Todos os vínculos e
relações humanas passaram a se basear na utilidade que os envolvidos
têm um para o outro. Somos ferramentas de usos emocional e financeiro
uns dos outros.
- Qual a minha função para você, a função da nossa relação? - perguntou-lhe Juliana, a foda tida como certa para esta noite.
Pego de
calças curtas, Rubens estranhou. Nunca vira Juliana como a um serrote, a
uma esferográfica, a uma buceta de borracha. Ofendeu-se, calado. Veria a
ele - ela - como a uma chave de fenda, a uma cafeteira elétrica, a um
vibrador? Rubens não lhe bastaria - como ela bastava a ele - apenas pelo
correr dos seixos no leito do riacho? Pelo brilho polarizado e morno?
Pela coreografia marcial dentro dela? Por que teria ele de ser a ela
ferramenta, utilitário, definição?
Rubens não
respondeu à pergunta. Não soube. Ou não quis. Juliana calçou os sapatos e
foi embora, sem se despedir, bufando. Incapaz de viver sem ver função
em tudo, Juliana ficou perdida. Perdeu-se na noite. Juliana, a buceta
perdida na cara do gol.
Rubens dá o
último gole na quinta vodka-tônica. Há ainda vodka para uma sexta dose,
mas não para uma sétima, e Rubens não gosta de números pares.
Rubens se levanta e vai para a cozinha, para a geladeira. Preparar a sexta vodka-tônica.
Já é mais do que hora de se livrar de velhas e tolas superstições.
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