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“Escritor Convidado”, escrito pelo nosso quase membro secreto A Doutora, publicado originalmente em:
https://disqus.com/home/discussion/channel-familiamarvel/precisamos_falar_sobre_elitismo_cultural/]
Quando
falamos em preconceito, na maioria das vezes, nos vem à cabeça os preconceitos
"mais comuns", ou os mais debatidos: racismo, homofobia, misoginia,
androgenia, etnocentrismo, intolerância religiosa, etc. Esses que
problematizam(os) todos os dias na mídia e redes sociais a dentro. E todos eles tem que ser debatidos mesmo. Porém,
existem outros tipos de preconceitos, que praticamos todos os dias,
simplesmente porque não sabemos. Porque não falamos sobre eles.
Nunca
fui (propositalmente, ao menos) uma pessoa racista, homofóbica ou sexista.
Nunca julguei alguém pelo seu local de origem nem pela religião que uma pessoa
segue. Portanto, sempre achei que eu era uma pessoa livre de preconceitos. Mas
eu era preconceituosa (e ainda posso ser), eu só não sabia. Praticava
preconceito linguístico e cultural - e sim, eles existem. Mas para não fugir
muito dos temas discutidos no canal, me atrelarei apenas ao último.
Ninguém
nunca me disse que eu era uma pessoa preconceituosa (o que reforçava ainda mais
minha crença de pessoa desconstruidona que se coloca no mesmo patamar que os
outros, sem nunca me senti superior). Porém um dia, ouvi sobre um tal de preconceito
cultural, que pode ser dividido em duas categorias: uma delas, bastante
debatida, tem a ver com o etnocentrismo: alguém achar que a sua cultura é
superior à do outro - por exemplo, acreditar que a cultura branca é superior à
indígena, ou que a cultura ocidental é melhor que a oriental (e vice versa), e
assim por diante. Acho que vocês pegaram a ideia. Existe outra forma de
preconceito cultural, também chamado de preconceito artístico, que tem a ver
com os produtos culturais que a pessoa consome, e era esse tipo de preconceito
que eu praticava. Ela pode parecer inofensiva (ou mais inofensiva se comparada
com outros tipos que representam ameaça mais eminente, como a homofobia e o
racismo, por exemplo), porém não se enganem: Ela pode ser tão prejudicial
quanto qualquer outra forma de preconceito.
Descobri
que eu era preconceituosa porque ao falarem os "sintomas" deste tipo
de preconceito, percebi que eu praticava muitos deles. Claro que eu não aceitei
a verdade logo de cara. Fiquei bolando um milhão de desculpas na minha cabeça
para justificar as coisas que eu dizia, pensava e postava sobre isso. Aí você
deve estar se perguntando: "Ok, Doutora, mas o que é esse tal de
preconceito cultural que você está falando tanto? Como eu sei se eu também não sou
assim?"
Pois
bem, o preconceito cultural parte da mesma premissa de todos os outros
preconceitos, que é partir do pressuposto (muitas vezes subjetivo e não
objetivo) de que algo é melhor que o outro. Mas até aí tudo bem, pois lembrando
que estamos falando de consumo cultural, e é normal gostarmos de algumas coisas
e não gostarmos de outras. O preconceito, na forma mais pura, começa quando
você passa a usar essa diferença de gostos para segregar e menosprezar uma
pessoa ou grupo de pessoas que não gostam da mesma coisa que você. É você se
julgar superior e se colocar em um pedestal porque você lê e entende Tchecov e
subestimar a inteligência de alguém que curte ler 50 Tons de Cinza, por
exemplo.
(exemplo de meme que perpetua o preconceito cultural) |
Inconscientemente,
era exatamente isso o que eu fazia. Eu achava que meus gostos musicais estavam
em um outro patamar de compreensão, e que pessoas que gostavam de músicas que
eu detestava (funk, por exemplo) jamais conseguiriam ouvir e apreciar a boa
música que eu ouvia. Vejo posts de páginas de rock (o tipo de música que mais
gosto, e um dos mais elitistas pelo que eu vejo) se preocupando mais em
inferiorizar determinados artistas ou estilos musicais em detrimento de exaltar
o que se gosta. Vejo nesses sites que tanto gostamos que discute assuntos nerds
pessoas se sentindo superiores porque gostam de ler quadrinhos do personagem X
ou Y e desmerece como inferior pessoas que gostam do personagem Z, como se sua
própria opinião fosse a régua sob as quais as opiniões dos outros devessem ser
seguidas. Conheço pessoas que se acham a última bolacha do pacote (e é bolacha,
não biscoito!) porque contemplam o cinema de arte francês com suas complexas
analogias sobre a sociedade e desprezam o gosto de quem gosta de ver um filme
divertido, com tiro, porrada e bomba e nada mais. Eu me achava superior por ver
séries de TV, enlatados americanos, e não perdia meu tempo com novelas com
tramas pasteurizadas e atuações ruins e design de produção pobres. Eu me achava
superior por não perder meu tempo com reality shows alienantes, ou programas de
auditório sexistas.
Mais um exemplo de meme com preconceito musical |
Embora
já tenha compartilhado memes como os de cima, atualmente gosto mais desta
versão:
Como
eu disse, eu relutei em admitir que eu era preconceituosa. Eu dizia: "Ah
ta, ter bom gosto agora é ter preconceito?"; "Ah ta, agora eu vou ter
que gostar do que a maioria gosta só por que está na moda?". Hoje eu tenho
maturidade o suficiente para entender que gosto é subjetivo, e o que eu
considero bom gosto pode não servir para a pessoa ao lado, e vice versa
(obrigada Immanuel Kant por abrir meus olhos) . Quando eu parei de brigar
comigo mesma, e passei a admitir que talvez eu fosse "um pouco"
elitista pela forma como eu julgava o gosto alheio, a solução para a pergunta
que circunda a maioria dos elitistas culturais me veio à tona. A pergunta é:
"Então quer dizer que eu tenho que gostar de tudo, se não eu sou
preconceituoso?" A resposta é: NÃO! Respire aliviado, você pode continuar
gostando de seus Tchekov, seus filmes de arte francês, seu estilo musical
favorito. Pois não é o seu gosto que define se você é um babaquinha elitista,
mas sim a forma como você se porta diante das pessoas que não tem os mesmos
gostos que você. Esse é o pulo do gato. Hoje, depois de muito recondicionamento
interno e conversando com pessoas, eu não penso mais que quem gosta de 50 Tons
de Cinza não tem capacidade de compreender Tchekov. Hoje eu não penso mais que
quem ouve funk nunca vai entender a magia do bom e velho rock'n'roll. Porque
quando falamos de arte e cultura, não estamos falando apenas de intelecto, mas
também e talvez principalmente, estamos falando de algo que nos toca na alma,
no coração. E cada um é tocado por coisas diferentes, e está tudo bem. Ninguém
é melhor do que ninguém. Somos todos iguais. Nossos gostos não são superiores e
nem inferiores ao de ninguém. Somos apenas diferentes!
Abraços a todxs,
A Doutora.