Ingênuo do homem que crê ditar os rumos de sua vida e ter o domínio de suas ações; tolo do homem que se julga detentor de livre-arbítrio; e pobre do homem - pobre, mesmo - que pensa que consegue, inclusive, controlar o próprio cu.
O cu é um órgão
caprichoso. Funciona quando quer e, no mais das vezes, nos momentos mais
impróprios e inconvenientes. Aparenta ter um cérebro próprio, o cu.
Vou a pé para o trabalho
todos os dias. Não só para o trabalho. Vou a pé para todos os lugares.
Ando boas léguas tiranas. E é bem sabido e comprovado que caminhar
estimula a motilidade intestinal, facilita e estimula o trânsito da
merda.
Não foram poucos os
apuros, os sufocos e os suadouros que já passei a caminho do trabalho
por conta da rebeldia e das idiossincrasias do cu, que, em casa, muitas
vezes se recusa em deitar a carga, mas, não muito depois, eu já na rua,
resolve largar o lastro. Não foram poucas as vezes em que tive de andar
trancando o cu, que tive de cerrar os diques, comportas e eclusas das
minhas invioláveis pregas para chegar de cuecas impolutas ao trabalho.
Ontem, mal acabara de
pôr pé à rua, andado cerca de uns quatro ou cinco quarteirões dos quase
cinco quilômetros de meu trajeto total, e o cu deu sinal de vida : "madeiiiiiiira!!!!!", pude ouvi-lo telepaticamente a gritar. Seria mais uma manhã daquelas, pensei inicialmente.
Não foi. Ontem, logo em
seguida, senti a maior gravidade e urgência da situação. Percebi, de
chofre, por esses instintos de sobrevivência que vamos aprimorando ao
longo da longa estrada da vida, que minhas inexpugnáveis pregas não
dariam conta; de súbito, constatei a inescapável dicotomia da minha
atual conjuntura : ou eu arrumava um lugar para cagar, ou me cagava.
Mas aliviar-me onde, às
seis da manhã, esperando para atravessar uma avenida de grande tráfego,
com um olho no semáforo e o outro no cu? Dizem que as soluções surgem
quando a água nos bate à bunda, que dirá, então, quando é a bosta que
nos alcança o rego?
Salvaram-me o meu raciocínio rápido e meus contatos etílicos.
Umas duas ou três vezes
na semana, de volta do trabalho ao lar, passo por um posto de
combustíveis - o Posto Triângulo -, que nem sei se pratica bons preços
de combustíveis automotivos, mas que tem sempre boas ofertas de etanol
próprio para o consumo humano, e compro lá uns latões de cerveja para a
noite. Conhecem-me por lá. Resolvi, sem outra saída, apelar para o
código de honra e conduta entre bebuns : pediria para cagar no banheiro
do estabelecimento.
O posto ainda estava a
umas duas quadras de onde me encontrava, distância que, no contexto em
que me achava, parecia intransponível, mas que era muito melhor que os
quatro quilômetros a serem ainda percorridos até o trabalho.
Cheguei a tentar,
enquanto aguardava o semáforo ficar-me favorável, impor a supremacia da
minha vontade ao meu corpo, a tentar exercer o livre-arbítrio do meu
cérebro sobre o meu cu. Mentalizei uma ordem ao cu: agora acabou a
brincadeira, quem decide a hora de cagar sou eu. Em resposta, a barriga
convulsionou numa lancinante pontada de cólica, mostrando-me, o cu, que o
livre-arbítrio acaba quando a merda fica madura.
Vencido, resolvi que
cagaria mesmo no posto. O semáforo ficou vermelho para os veículos.
Respirei fundo. Tranquei o cu e atravessei. Como garantia adicional,
apeguei-me também ao divino, pedi proteção celestial e aferrei-me com fé
ao santo protetor e padroeiro dos desarranjos e das cagadas perdidas : - Valha-me, São Fernandão! - gritei. E me pus a caminho do Triângulo.
Dei sorte. Estava, ao balcão, o mesmo rapaz que costumava me atender à tarde. - Que é isso, Moisés? Tá começando cedo hoje, é?
- ele me disse à minha entrada. Ele não sabe meu nome, mas me chama de
Moisés há algum tempo, de quando, durante uma época, eu deixei minha
barba crescer a proporções realmente bíblicas.
- Bem que eu gostaria de estar começando, bem que eu gostaria
- respondi - e contei-lhe meu infausto. Deu-me prontamente a chave do
banheiro, mas não sem antes dar umas boas dumas gargalhadas. -Mas não tem papel - falou. - Penso nisso depois - eu disse.
O banheiro também não
tinha luz. Foi a conta de me sentar e a carga arriar bonito. Uma
avalanche. Bem já dizia o cronista Mário Prata, merda madura é carga insustentável. No que eu o complemento, o livre-arbítrio acaba quando a merda fica madura.
Alívio imediato, meus amigos, alívio imediato. Melhor do que muita trepada que já dei.
E agora, limpar com o
quê? Abri a minha bat-bolsa de lona cáqui de utilidades que carrego a
tiracolo, peguei um livrinho de palavras cruzadas e me limpei com duas
de suas folhas, que se saíram muito bem na tarefa, por serem do tipo
papel jornal, com textura, porosidade, aderência e absorvibilidade
adequadas. Em casa, sempre cago a fazer cruzadas, mas foi a primeira vez
que me limpei com elas. Cruzadas do grupo Coquetel. Recomendo.
Usei duas folhas já
preenchidas, ou quase. Uma delas, de fato, eu havia preenchido por
completo, tinha-a gabaritado. Na outra, restava uma lacuna, uma clareira
de minha ignorância bem no meio da densa mata de minha cultura inútil :
"diz-se do texto ou códice aceito na exegese hebraica", com onze letras; com "a" e "s" na segunda e na terceira e "e" e "t" na sétima e oitava.
Salvei o cu, mas nunca saberei do códice aceito na exegese hebraica.
A vida é mesmo feita de prós e de contras.