GENIAL, MAS... Nelson Rodrigues não cabe no Brasil de 2017.
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SERIA
POSSÍVEL Nelson Rodrigues existir como autor no Brasil de hoje? Não dá para
saber com certeza científica, mas é extraordinariamente difícil imaginar que
pudesse escrever e dizer tudo o que escreveu e disse. Quem deixaria? Nelson Rodrigues
é o maior autor de teatro que o Brasil já teve – seu nome estaria no topo da
literatura mundial se não tivesse
nascido, vivido e escrito na língua portuguesa. Mas hoje seria
considerado uma ameaça nacional. A mídia veria nele um agente da “onda
conservadora” ou uma voz de “extrema direita”; estaria banido pela boa
sociedade cultural brasileira como intolerante, preconceituoso e fascista. Os educadores
públicos fariam objeções à leitura de seus textos nas salas de aula. Sua
entrada poderia ser proibida no departamento de novelas da Rede
Globo. Procuradores e juízes estariam em cima dele o tempo todo, tentando
condená-lo por machismo, racismo ou homofobia. Pense um pouco no que Nelson
estaria escrevendo, por exemplo, sobre transgêneros, “feminicídio” ou a
indignação contra o papel higiênico preto – isso para não falar sobre o homem
pelado como obra de arte, ou nas multas aplicadas aos clubes de futebol quando
a torcida grita “bicha” para o goleiro do outro time. Não dá. Nelson Rodrigues
não cabe no Brasil de 2017.
Como
poderia ser diferente, num país tão empenhado no policiamento da atividade de
pensar? Não existe hoje no Brasil nenhuma obrigação moral e cívica mais cobrada
do cidadão do que se manifestar contra o “preconceito” e a “intolerância”. Não
espere, portanto, nenhum Nelson Rodrigues num ambiente assim. Em vez disso,
fique atento às suspeitas da ocorrência, próxima ou distante, de qualquer
comportamento que possa ser classificado como preconceituoso ou intolerante.
Aí, se quiser ser um bom cidadão, assine o mais depressa possível um manifesto
de condenação, desses que aparecem todos os dias no jornal — ou, se não tiver
cacife para tanto, por não ser licenciado como celebridade, faça alguma coisa a
respeito, nem que seja um telefonema anônimo para o “Disque-Denúncia” mais
próximo. É fácil descobrir a opinião que você deve ter a respeito dos assuntos
em circulação. Preconceito e intolerância, em termos práticos, são o que o
Comitê Brasileiro de Vigilância do Pensamento decreta, de hora em hora, que são
preconceito e intolerância.
Que
“comitê” é esse? É o habitual aglomerado de artistas, com ou sem obra, pessoas
descritas como intelectuais, com ou sem algum intelecto visível, a gente de
currículo em estado gasoso, mas que por alguma razão é apresentada como “importante”.
São eles os árbitros, hoje em dia, do que é certo ou errado neste país. Decidem
como todos os demais cidadãos devem se comportar do ponto de vista moral,
social e político. Não toleram que alguém demonstre intolerância – é assim que
chamam automaticamente qualquer ponto de vista não autorizado por seu livro de
regras. O delito essencial, por esse catecismo, é pensar com a própria cabeça a
respeito de uma lista cada vez maior de assuntos, Sobre cada um deles há
decisões já tomadas em ultima instância; são apresentados diariamente nos meios
de comunicação.
O
resultado é o combate a tudo o que possa ser carimbado como intolerância está
criando no Brasil mais uma raça de intolerantes. Acaba de ser derrubada no STF,
por exemplo, a regra baixada quatro anos atrás pelos organizadores do Enem pela
qual levavam nota zero os estudantes que escreverem na prova de redação alguma
coisa contrária aos “direitos humanos”. Considerada por quem? Por eles mesmos,
os burocratas do “Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais”. Ou
seja: nomearam a si próprios árbitros do que os alunos podem ou não pensar e
dão zero quando não gostam do que o aluno pensa. Nem no regime militar se
chegou a esse grau de megalomania na tentativa de controlar o pensamento
alheio; nunca, na época, alguém assinou um papel em que se determinava a
anulação de provas de conteúdo subversivo. Quem é essa gente para decidir o que
você pode dizer?
Outro
exemplo comum de hostilidade a ideias discordantes é a conversa da “identidade
de gênero”—ou a questão, ou até a “causa”, das pessoas atualmente descritas
como “transgêneros”. Ficou estabelecido, como princípio moderno e gerador de
mais justiça, que os serem humanos não devem ser diferenciados, para propósitos
de identificação, pelo sexo anatômico com que nasceram. Podem escolher o gênero
que combinar mais com o seu jeito de ser, no momento que julgarem necessário
fazer essa opção. Tudo bem: cada um pensa o que quiser, e, além do mais, todo
cidadão é livre para levar a vida como prefere, ou que pode, em termos de
sexualidade. Mas não há nenhuma razão para a sociedade se escandalizar com quem
não concorda, ou não entende, que as pessoas sejam assim – ou não acredita que
esse seja um assunto de interesse universal. Qual é o problema? Não deveria ser
considerado intolerante, retrogrado ou totalitário quem acredita que os sexos
são só dois, masculino e feminino. Ou que todo ser humano, sem exceção, tem um
pai e uma mãe, que obrigatoriamente são um homem e uma mulher. Ou que é
impossível um homem ficar grávido, por lhe faltarem um útero, trompas, ovário –
ou por não ter leite, não menstruar e não produzir óvulos, da mesma maneira que
uma mulher não produz espermatozoides. Não se pode haver, é claro, nenhum
problema com nada disso. Só que há.
“Vai
se inventado, de cima para baixo, uma sociedade mal-humorada, neurastênica e
hostil à liberdade de expressão”
A
lista de pecados capitais contra o pensamento obrigatório vai longe. Você
estará perto da blasfêmia se argumentar que animais não tem direitos, pois a
noção de direitos se aplica unicamente a seres humanos – animais não podem ter
o direito de votar, por exemplo, ou de ter nacionalidade, ou de receber salário
mínimo. Mas dizer isso é infração gravíssima. Está vetado, igualmente, o debate
sobre a questão ambiental como um todo; é considerado suspeito qualquer pessoa
de mais pesquisas científicas sobre temas como aquecimento global, ou a
cobrança de dados mais seguros sobre a previsão de que o Rio de Janeiro vai ser
engolido pelo mar daqui a alguns anos. Defensivos agrícolas são uniformemente
descritos como “agrotóxicos”; não insista. Também é tido como preconceito grave
discordar da ideia de que o crime no Brasil é um “problema social” e que
criminosos, portanto, são vítimas da sociedade, e não agressores. O deputado Jair
Bolsonaro foi condenado por uma juíza do Rio de Janeiro, ainda outro dia, por
ter feito uma piada de quilombola durante uma palestra. A Constituição,
obviamente, proíbe que um deputado seja punido por falar o que lhe passa na
cabeça, mas a juíza argumentou que “política não é piada” e foi em frente. Não
é piada? De que país ela está falando?
A
intolerância contra opiniões que incomodam começa a produzir, depois de algum
tempo, disparates como esse. É uma surpresa que o Ministério Público ainda não
tenha proibido as piadas de papagaio, ou que uma juíza não tenha decretado que
a dama deve valer a mesma coisa que o rei no jogo de baralho. Vai se inventado,
de cima para baixo, uma sociedade mal-humorada, neurastênica e hostil à
liberdade de expressão. É um ambiente que convive mal com a observação dos fatos,
a ciência e o raciocínio lógico. Estão construindo, talvez acima de tudo, um
país de chatos. ■
Escrito por: J. R. Guzzo e publicado originalmente na VEJA, edição de 15 de novembro de 2017.
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