▕ Wagner Williams Ávlis*
“Eu odeio super-heróis. Eu os vejo
como abominações. Originalmente eles ficavam nas mãos de autores que
expandiriam sua imaginação para atingir seu público de 9 a 13 anos de idade.
Era isso que devia ser feito e eles o faziam muito bem. Hoje em dia os quadrinhos
não são mais para este público. [...] Alarmante que um público adulto vá ao
cinema assistir aos Vingadores e fique maravilhado com personagens que
deveriam entreter garotos de 12 anos nos anos 1950. [...] Leitores de
super-heróis são pessoas que, em geral, não têm o controle da própria vida” ━ Alan Moore.[1]
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A antiga e vazia noção do
super-herói em quadrinhos como sendo um imaginário infantil ainda não foi
superada, mesmo em tempos da apoteose pop como esse nosso. O Super-herói como
“coisa de criança” resiste no julgamento dos mais velhos e na percepção dos
mais novos, em suma, persiste no senso comum, âmbito onde tem atuado os filmes
de quadrinhos numa espécie de mescla entre ficção científica, literatura
infanto-juvenil, produtos de massa, em que, exceto em alguns poucos filmes, em
geral incompreendidos ou pouco aceitos pelo grande público, discussões com
temáticas profundas são deixadas de lado para projetar, sempre em primeiro
plano, o lúdico (por vezes acima de qualquer outro propósito), em um assunto
que pouco combina com divertimento, que é a busca, o acúmulo e o exercício do
poder.
O mais intrigante é que a
associação que se faz por aí do herói quadrinístico para com a fantasia da
criança parece somente perseguir a 9ª arte, estigma herdado da censura do
Comics Code Authority durante a Era de Prata das Histórias em Quadrinhos
(1956-1970), censura que forçou as HQs a se adequarem a uma postura de anulação
da violência, do terror, da sedução, da denúncia social, fazendo-as adquirir
uma característica infantil. Em nenhuma outra expressão artística a figura do
herói é vista com infantilidade, e o gibi é o único suporte artístico sinônimo
de “passatempo de crianças”, uma herança dada pela acepção da palavra “gibi”
(“moleque negro travesso”) – sinônima da palavra “mirim” – e pelo título duma
revista infantil da empresa Globo, de Roberto Marinho, chamada “Gibi”, de 1939,
a partir daí um sinônimo de "revista de histórias em quadrinhos" no
imaginário popular. Logo, a associação feita obedeceu a este esquema: criança → super-herói → quadrinho → leitor de quadrinhos → criança.
Para o senso comum, o leitor de quadrinhos heroínicos nada mais é do que um
crianção ou uma criançona mesmo que seja um(a) colecionador(a) sexagenário(a).
Diante dessa berlinda, cabe uma pergunta, como o gênero quadrinístico de
super-heróis poderá encontrar saída contra o estigma de “coisa de criança”, e portanto
produto raso, para assumir no senso das massas seu lugar, de fato e de direito,
de arte de alto nível?
Não é absurdo esperar por tal respeito do senso comum para as
HQs heroínicas. Em matéria de arte muitas vezes o respeito antecede o
preconceito. Vejamos. O que nossa época chama “literatura infantil” não é tida
por um consumo bobo por nenhum adulto, aliás, sequer é chamada assim por
bastante gente, já que se chegou à acertada percepção de que seu conteúdo
veiculado atinge não só os infantes, atinge todos os públicos, ainda mais
quando veiculado com procedimentos universais da Literatura. Somente os (poucos)
tolos dirão que obras como O Pequeno
Príncipe, de Saint-Exupéry, Alice no
País das Maravilhas, de Lewis Carroll, ou As Aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi, são historietas para
crianças. Outro caso é a fábula. Em nenhuma época a fábula, com todos os seus
personagens ora crianças, ora animais falantes, jamais foi vista como “coisa de
criança”, pelo contrário, sua força didática lhe alçou ao respeito que
atravessou séculos, sem público seleto, de sorte que artistas como Esopo, os
Irmãos Grimm, Charles Perrault, La Fontaine, Hans Christian Andersen, Gustave
Doré, tornaram-se referência tanto para o segmento artístico quanto para o
povão. Há ainda o caso do romance. Quando, no séc. XIX, com o advento da
imprensa, o folhetim saiu dos jornais para o livro tipográfico-encadernado, seu
maior público leitor eram as mulheres[2],
fato que influenciou tendências, temáticas, modo de compor tramas; o romance
romântico, até os dias atuais – a exemplo dos pocketbooks “Sabrina”, “Júlia”, “Bianca”
–, ainda traz consigo características acentuadamente femininas do tempo dos
folhetins, e, no entanto, mesmo nos anos efervescentes do seu consumo, nunca
foi taxado como “leitura de mulher” ou pejorado como “coisa de mulherzinha”.
Diferente disso o romance romântico é um produto tão prestigiado que nos meios
de circulação, desde sempre, atualiza-se, remodela-se, assumindo em nossos dias
um sem número de subtipos e formas, num arco que se estende desde A Culpa é das Estrelas, um box quádruplo
de Sidney Sheldon a best-sellers de Martha Medeiros como Doidas & Santas, consumidos, ressalte-se, por crianças,
adolescentes, jovens, adultos, idosos, homens, mulheres, gays e lésbicas.
Por que então uma arte nascida na crista da
contemporaneidade, como foi o quadrinho de super-herói, jovem, ainda em pleno
vigor de seus 80 anos de vida útil, não conseguiu libertar-se do taxativo de
besteira de moleque? O que explicaria a força dos 30 anos de “censura da
infantilização” (contida no citado Comics Code Authority) sobre os
50 anos majoritários da 9ª arte? Muitas são as explicações, entretanto, uma é a
sede das demais: a incompreensão do
sentido do gênero; incompreensão que se flagra intensificada quando sabemos
que a preocupação em explicar o gênero heroínico dos comics é tardia, escassa,
vinda somente nos anos 1990 com uma crítica de cunho mais histórico do que literário[3].
As histórias em quadrinhos de super-heróis, trocando em miúdos, consistem num
deficiente escopo artístico incompreendido no Brasil, pouco estudado e com
apenas 20 anos de análise técnica nos EUA, ainda percebidas como um produto de
massa e não como arte, razão por que entre nós ainda são anuviadas por sombras
de preconceito.
O fato é que o gênero de
super-heróis é mais do que uma arte, é uma aspiração humana, a manifestação do
ideal contido no inconsciente coletivo,
nos termos de Gustav Jung, ou no inconsciente
social, nos termos de Erich Fromm[4].
O ideal do herói é o ponto onde acaba a natureza [limitada] e começa a cultura [imaginária],
daí a diante o devir, o vir a ser, e
não o modo de ser, algo bem ilustrado
na fala da Ofélia ao rei em Hamlet, de William Shakespeare, no ato IV, cena V: “Sabemos, senhor, o que somos, mas não o que
viremos a ser”, um equivalente a “eu não sei o que quero ser, mas sei o que
eu não quero me tornar”, de Friedrich
Nietzsche, e uma variante de “não é quem
eu sou por dentro, e sim o que eu faço é que me define”, no filme Batman Begins (2005). O ideal do ser herói, como fora posto, está
presente na coletividade, porém tem origem na noção de limite, os limites do
corpo, da força, das condições materiais, da justiça, das virtudes, enfim, de tudo
o que circunda a materialidade da existência e que, dalguma forma, nos reprime,
como ensinara o psicanalista alemão Erich Fromm, “o moderno ‘homem de organização’ pode
sentir que sua vida não tem sentido, que seu trabalho o aborrece, que tem
pouca liberdade de fazer e pensar como quer, que está perseguindo uma ilusão de
felicidade que jamais se alcança ou torna verdade. Mas se ele tivesse consciência de tais
sentimentos, seria muito prejudicado em sua atuação social. Sua consciência
constituiria um perigo real para a sociedade tal como está organizada, e em
consequência o sentimento é recalcado”[5].
Libertar-se das amarras da limitação material através da imaginação para
tornar-se idealmente um super-eu é coisa que crianças, adultos, idosos fazem,
se não o tempo todo, todo o tempo de suas respectivas fases, e por isso voar
nas asas da ficção, ainda quando são os super-heróis a condução, não possui
idade.
Mas que tipo de linguagem e qual
categoria de arte de ficção seriam compatíveis e contemplariam esse negócio de inconsciente
coletivo/inconsciente social no ideal do super-herói? Aqui reside toda a
incompreensão do sentido do gênero quadrinístico. O tipo de linguagem é a alegoria e arte é o apólogo. Alegoria é uma expressão
figurada, simbólica, não real, de um conceito ou de um sentimento, através da
qual um objeto pode significar outro, transmitindo um ou mais sentidos; a “alegoria
da caverna” no livro VII na República,
de Platão, é a mais famosa. O apólogo é um gênero textual alegórico tendo por
personagens seres inanimados ou animalescos apresentando alguma lição de vida; A Revolução dos Bichos, de George Orwell,
é, todo ele, basicamente um apólogo. Temos então que a alegoria e o apólogo
possuem uma caraterística comum, a representação. Atados, ambos, com sua
representação, constituem a essência de todas as parábolas, fábulas e dos mitos
correntes que uma antropologia possa registrar. As histórias em quadrinhos dos super-heróis
se incluem nesse arcabouço de representatividades alegóricas do engenho humano,
são, pois, a representação de arquétipos, uma metáfora moderna, a atualização
das fábulas, são parábolas do contemporâneo. A ideia do herói, presente desde
as primitivas tribos de caçadores, não é outra coisa senão o grande e universal
apólogo da alma do Ocidente que encontra como espaço privilegiado de difusão,
dentre tantas outras mídias, os comics. Como isso acontece na prática é coisa
que continua no próximo capítulo...
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(*) Professor de Língua
Portuguesa, Literatura Brasileira, Redação, escritor da Academia Maceioense de
Letras, articulista de imprensa. Nas horas vagas, é historiador do
Homem-Morcego.
[1]
Extraído do jornal The Guardian em
2013. Citação do Terra Zero, “Alan Moore comenta super-heróis e o entusiasmo dos fãs”. Todos os críticos e leitores do Mago de Northampton estão cientes de que se
trata duma declaração regada a ressentimento, amargura, revolta, decepção com
as editoras do mainstream de super-heróis para as quais prestou serviço, não é
pois uma confissão imparcial. Também desejo esclarecer que, com isso, não estou
idolatrando a figura de A. Moore, embora eu o considere o maior gênio que os
quadrinhos tiveram em nossa contemporaneidade, estou apenas colocando as coisas
em seu devido lugar. Como pessoa eu repudio a vida, a conduta e a visão de
mundo que Moore tem, ele, para mim, como indivíduo, é um péssimo exemplo e não
me é nenhuma referência a seguir; porém, como artista, o considero genial,
melhor do que o próprio Will Eisner, o criador das grapich novels.
[2]
Para uma compreensão global dos acontecimentos históricos, indico o artigo
português de RAFAEL, Gina Guedes. Jornais,Romance-Folhetim e a Leitura Feminina no Século XIX: InfluênciasTransatlânticas? Revista ÍRIS, v.1, nº 1, p.32-42, jul./dez.2012. Recife:
UFPE, 11 págs.
[3]
Antes da década de 1990 tudo o que se tinha de crítica ou apontamentos sobre
quadrinhos, sobretudo no Brasil, era de cunho histórico e não analítico-literário. Por
aqui a exceção é o trabalho de Álvaro de Moya, SHAZAM! – Debates, Comunicação, de 1970, de teor mais voltado para
a análise sociológica.
[4]
O “inconsciente coletivo” indica diretamente a psique universal, grande parte
da qual não pode nem mesmo tornar-se consciente. O conceito de inconsciente
social parte da noção do caráter repressivo da sociedade e se refere àquela
parte específica da experiência humana que uma determinada sociedade não
permite que atinja a consciência”. FROMM, Erich. Meu Encontro com Marx e Freud. 7a edição. Rio de Janeiro: ed.
Zahar, 1979, p. 109.
[5] FROMM,
Erich. Op. cit., p. 115.
1 Comentários
Brasil ora se considera evoluído ora difunde a ignorância, parabéns pelo texto Querido Wagner Williams Ávlis
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