Esta crítica analítica poderia terminar no começo e neste ponto: Jeannie, a esposa gestante do comediante, não foi morta pelos mafiosos do Capuz Vermelho, Barbara Gordon não foi estuprada, Batman não estrangula Coringa no final; estes, os três pontos considerados dúbios em Piada Mortal (1988), de Alan Moore e Brian Bolland[1], não são abertos a interpretações, porquanto o que digo é o que consta no roteiro original datilografado pelo Mago de Northampton, como se pode conferir aqui. Posso ir ainda um pouco mais. No mesmo mês da graphic novel, a DC a estabeleceu como um evento canônico[2] – abandonando assim a proposta de ser elseworld –, integrando a cronologia oficial do batverso. De 1988 para frente nos quadrinhos, seguindo a cronologia, Barbara Gordon surgiu como abstinente do manto de Batgirl, aleijada, e Coringa apareceu vivo ininterruptamente. Além disso, até 2013, aquelas dubiedades jamais foram cogitadas no conto. Foi o sensacionalismo de Grant Morrison que incutiu a ideia numa entrevista com Kevin Smith[3]; Brian Bolland, no entusiasmo marqueteiro da reimpressão da graphic novel, depois do aniversário de 20 anos da publicação, endossou-a quando de sua recolorização e, mais recente, Rich Johnston, do site Bleeding Cool, sugeriu que, ao final da história, “o Batman e o Coringa morreram envenenados”[4], enquanto Devin Grayson com Scott Beatty inferiram que, segundo relato do Charada, a esposa do Coringa foi sequestrada e assassinada pela quadrilha do Capuz Vermelho a fim de forçar o comediante a cumprir o plano de roubo à indústria Ace[5]. Notemos, se largarmos a obra às múltiplas recepções interpretativas dos leitores incorreremos, de inevitável, numa espiral quase infinita de interpretações, e ela se dissipará na perda de sua verdade artística objetiva que toda peça de arte contém. Como crítico literário, defendo, em consonância com as escolas teóricas de corrente textualista, que toda obra de arte possui uma sólida e pura significação imanente, possível de ser apreendida objetivamente por meio da análise de sua estrutura. Para confirmar a integridade conteudística do trabalho de Alan Moore bastariam as três coisas de que falei: o roteiro original nada diz a respeito, Coringa continuou vivo na cronologia do Batman, aquelas ambiguidades só vieram aparecer 25 anos depois. E minha crítica encerraria aqui. Entretanto, isso não seria uma crítica. Uma análise requer a sondagem da obra, o que ela nos mostra, o que tem a dizer, e não o que é externo a ela é o que vem dar o ponto final. Deixarei que a obra fale por si e demonstre, através da sua composição, sua própria verdade.
➲ Piada Mortal: indefinições, não ambiguidades
O conto de Alan Moore e Brian Bolland é um daqueles que estabelece
um intervalo entre o que se espera e
o que se realiza, a chamada
"distância estética"[6].
O que ele realiza é dado por sua estrutura; o que se espera dele é dado por
nossas expectativas de leitor. Se nossa expectativa é a de que Jeannie foi
sequestrada e assassinada, Barbara Gordon estuprada, Coringa degolado, há aí
uma distância, porque, averiguando a estrutura, apesar de interessante, não é
bem isso que o conto realiza. A começar pelo foco narrativo da trama – em 3ª
pessoa, “narrador onisciente múltiplo” –, que transita, seleciona e se
multiplica em outros narradores entre pontos de vista distintos, temos alguma
garantia de objetividade/imparcialidade dos fatos. Em Piada Mortal têm-se dois narradores:
1) o
olhar onisciente pelo qual nós acompanhamos as cenas à garante
a objetividade/imparcialidade dos fatos;
|
2) o
Coringa com seus flashbacks da sua vida pré-crime à perspectiva
unilateral, subjetiva, parcial da história.
|
O narrador-1 nos fornece o
que de fato acontece nos eventos: Batman vai ao Asilo Arkham, Coringa obtém
um parque de diversões, Barbara é alvejada, Jim Gordon é sequestrado. O
narrador-2 nos fornece suas versões
dos fatos de sua origem: o fracasso na carreira humorística, a miserabilidade,
o acordo do assalto com mafiosos, o óbito da esposa, a queda no tanque ácido. Essa
subjetividade do Coringa é demonstrada em seu discurso ao Batman na casa dos
espelhos:
– Foi assim que aconteceu comigo, sabe?...
Bem, eu não tenho certeza absoluta...
Algumas vezes me lembro de um jeito.
Outras vezes, de outro... Se eu vou
ter um passado, prefiro que seja de
múltipla escolha, hahaha! Mas meu ponto é... Meu ponto é..., eu fiquei
louco. Quando vi que piada de mau gosto era este mundo, preferi ficar louco. Eu admito! (p.42, 2ª e 3ª
quadrículas).
É por
isso que a rejeição do Coringa contra o passado, pontuada no decorrer da trama,
tem como núcleo a parcialidade do narrador-2. Ao forçar o Comissário Gordon
para o trem-fantasma, o vilão diz:
– “Lembra”? Oh, eu não faria isso! Lembrar é
perigoso... Eu vejo o passado como um lugar cheio de ansiedade. O “pretérito
imperfeito”, como você chamaria [...]. As memórias são traiçoeiras! (p.24,
2ª e 3ª quadrículas).
Essa é a
razão de Piada Mortal ter sido
considerada pelos críticos americanos como “uma
das histórias possíveis da origem do Coringa”[7],
já que nem o próprio lembra direito sua origem nem assegura sua exatidão.
Se juntarmos os dois narradores da trama (que resultam no dito
“narrador onisciente múltiplo”), teremos o binômio objetividade/subjetividade
dos fatos. A maior parte do conto é toda objetiva, a menor, toda subjetiva,
porém o domínio é da objetividade, e por isso não se pode falar de algumas
cenas “ambíguas”; no máximo, pode-se falar de algumas cenas indefinidas. Nesse
ponto poder-se-ia traçar um paralelo entre Piada
Mortal e o livro Dom Casmurro (1899),
de Machado de Assis. O desfecho do romance, que trata do mistério se Capitu é
adúltera ou não, se mobiliza em função do narrador, ali, um narrador-personagem
– uma narrativa dotada de emoções daquele que narra, presa ao seu ângulo de
percepção. O que Bentinho narra é o que ele sente ou percebe, jamais a
realidade fora dele, o que faz o leitor questionar se Capitu daria a mesma
versão que Bentinho. Nos acontecimentos do romance nada prova que Capitu teve
um filho com o melhor amigo do marido, Escobar; tudo fica no ar, oscilando
entre suspeitas e equívocos. Nesse caso, por força da perspectiva única do
narrador-personagem, pode-se falar de cenas ambíguas, porque, como dito, oscilam
entre as suspeitas e os equívocos de quem narra. Equívoco maior foi tentarem
tornar A. Moore um novo Machado de Assis com um final ambíguo, quando na
verdade, o que Moore compôs, de modo igualmente genial, foram algumas poucas indefinições.
Conforme dito, essa é a interpretação da dupla Devin Grayson/Scott
Beatty. Os mafiosos a quem o hesitante comediante recorre seriam os
responsáveis por encomendar o sequestro e a morte da esposa dele, como forma de
forçá-lo ao roubo da fábrica. A interpretação se apoia nestes dois diálogos: a)
entre os tiras e o comediante no bar
– Sinto muito, sr., mas sua esposa sofreu um
acidente..., aparentemente testando um aquecedor de mamadeiras! Houve um
curto-circuito e... Bem... Ela morreu, sr.
(p.25, 5ª quadrícula);
b)
entre os mafiosos e o comediante na mesa do bar
– Sem “mas”! Amanhã você enterra sua esposa
em grande estilo. Hoje nós temos um trato. Pegou a foto [da sua
esposa]?
– Sim. A foto... Eu peguei a foto (p.26, 5ª
e 6ª quadrículas).
A questão
colocada pelos argumentistas é: como Jeannie pôde aquecer uma mamadeira se ela
ainda não tinha bebê? E se tivesse, um recém-nascido mama no peito, não em
mamadeira. E para quê os mafiosos fizeram questão de o comediante guardar a
foto de sua esposa, antes sob posse dos tiras que o procuravam? Ainda sobre os
mafiosos, Scott Beatty acrescenta que, na arte de B. Bolland, a dupla age
desconfiada, com comportamento suspeito, e parece rir da tragédia do
comediante. Devido às incoerências, o acidente com Jeannie foi forjado.
Cumpre dizer que essa cena integra o
rol de subjetividades do conto, pois é contada pelo narrador-2, portanto sem a
garantia da credibilidade. Contudo, a estrutura dos flashbacks aponta para a
negação do que dizem Devin Grayson e Scott Beatty. Já no primeiro flashback do
Coringa, Brian Bolland apresenta a gestante Jeannie na cozinha do casebre num
recurso de analepse exterior[8],
onde o ângulo de visão nunca parte do comediante, mas de um observador externo.
Na cena inicial do flashback, logo abaixo, no piso, aos pés de Jeannie, está um
aparelho elétrico indefinido com a tampa aberta (indefinido por influência da
indefinição da memória do Coringa), que muito lembra um antigo aquecedor de mamadeiras,
indicando que Jeannie já o vinha testando. No mundo real, uma gestante perto de
dar à luz, testando utensílios para o bebê é coisa comum. Na quadrícula, o
aparelho não pode ser visto como um ventilador por causa do formato; de igual,
não pode ser uma lamparina, porque já há incidência de luz sobre Jeannie vinda
da lâmpada de cima; entretanto, ele também não pode ser reconhecido à primeira
vista como sendo um aquecedor de mamadeiras; é somente com o cruzamento dessa cena com a posterior informação dos
tiras que é possível chegar a essa inferência. O aparelho, pois, funciona
ali com um efeito easter egg. Em
Literatura o efeito easter egg é
chamado de “motivação composicional”– segundo Boris Tomachevski, “os motivos
particulares podem caracterizar os objetos colocados no campo visual do leitor
(os acessórios) ou então as ações dos personagens (os episódios). Nenhum
acessório deve ficar inutilizado pela fábula. [...] Se no início da novela
diz-se que há um prego na parede, é justamente neste prego que o herói deve se
enforcar”[9].
Umberto Eco também aludiu à motivação composicional, dizendo: “[...] Se no
início de um conto ou de um drama mostra um fuzil pendurado na parede, antes do
final esse fuzil terá que disparar. [...] Saber se ele vai disparar ou não é
justamente o que confere significatividade ao enredo. [...] Descobrir no final
se o fuzil disparou ou não, não assume o simples valor de notícia. É a
descoberta de que as coisas aconteceram, e para sempre, de uma certa maneira,
além dos desejos do leitor. O leitor tem que aceitar esta frustração, e através
dela experimentar o calafrio do destino”[10].
No detalhe, o estranho objeto com tampa aberta posto em cena pelo desenhista Brian Bolland. Somente com o cruzamento das cenas é possível ver nele o aquecedor da mamadeira que eletrocutou Jeannie. |
De igual forma, não há segredos para a questão da fotografia
do comediante com sua esposa entregue pelos tiras. Antes de tudo, os tiras são
policiais de verdade, um deles está fardado e com identificação (o outro está
em trajes de inspetor), a presença deles intimida, amedronta a dupla de
mafiosos (visível na arte de B. Bolland), o comunicado dado fora do
estabelecimento é procedimento padrão. Isso já demonstra duas coisas: os tiras
não estão blefando, não são mafiosos disfarçados; a fotografia, de posse dos
policiais, foi adquirida no local da ocorrência, isto é, na casa de Jeannie. A
dupla de mafiosos faz questão de que o comediante guarde a fotografia porque,
quadrículas antes, ele a deixara na mesa do bar antes de sair com os tiras.
Diante da hesitação do comediante em levar à frente o plano de assalto após a
notícia do óbito do cônjuge, a foto da esposa serviria como um símbolo
comovente para reanimar o comediante a cumprir o plano, já que “amanhã ele enterra a esposa em grande
estilo” (p.26, 5ª quadrícula); sepultar a amada não como indigente, mas com
dignidade, era agora a motivação para obter o dinheiro. É, portanto, infundada
a interpretação cuja qual a esposa foi sequestrada e assassinada com o objetivo
de forçar o comediante a cumprir o plano do roubo, até porque, além dos
elementos estruturais apontados, o comediante já estava decidido a cumprir o
plano, mostrando que Jeannie viva era a sua mais eficiente motivação:
MAFIOSO: – Então quer dizer que está tudo
certo pra hoje à noite?
COMEDIANTE: Hã... Bem... Claro! Seria loucura
desistir agora! (p.25, 1ª quadrícula).
Sobre o comportamento suspeito e o riso dos mafiosos ante a
notícia do óbito da mulher do comediante, é um erro de sensibilidade artística
de Scott Beatty (e isso põe em xeque o quanto de artista ele é). O comportamento suspeito dos ladrões só
ocorre enquanto a polícia está presente (haja vista ela os intimidar); após
isso, o comportamento dos ladrões volta à extroversão. E o aparente riso deles nada mais é do que uma impressão psicológica do
narrador-2, que recorda a cena do seu ponto de vista, afetado por sentimentos
dolorosamente reciclados. Uma prova disso é a última quadrícula (14ª) da
cena. Depois dos mafiosos se retirarem, os desconhecidos frequentadores do
mesmo bar – até antes alheios à existência e à conversa do comediante com os
mafiosos – aparecem olhando para o comediante e rindo de sua tragédia. É um
efeito psicológico do foco narrativo, é a impressão do narrador-2 sobre o fato
– isto é, a impressão dele sobre ele mesmo de que, frente aos fracassos,
tornou-se motivo de chacota, uma piada para o mundo –, e não que os
frequentadores do bar estavam prestando atenção em tudo o que ocorreu ao
comediante para rir dele no final. Esse mesmo efeito psicológico é o que foi
aplicado ao “riso” dos mafiosos na ilustração de B. Bolland.
Sabemos que um estupro numa trama de Alan Moore não é nada
atípico, e talvez por essa certeza seja fácil ver na cena do aleijamento de
Barbara Gordon a violação sexual da personagem. O raciocínio é quase dedutível:
se Coringa a despiu estando aleijada para fotografá-la, o que o impediria de
violentá-la com fins de humilhação dela e do pai Jim Gordon? Há também quem
argumente falando que a implicitude do estupro estaria no trato
sádico-fetichista a Jim Gordon no parque, preso numa coleira de snuff movies (filmes pornôs violentos), arrastado
nu, adestrado por anões crossdressers
(vestidos com lingeries). O tratamento sádico-fetichista ao Comissário Gordon
seria uma extensão do estupro à Barbara, sua filha. Outros ainda argumentam que
a cena da invasão do Coringa à casa dos Gordon foi influenciada pelo filme Laranja Mecânica (1971), de Stanley
Kubrick, onde os droogs ocupam uma casa, invalidam seu dono e estupram sua
mulher. Para muitos leitores, Barbara estuprada é uma certeza, a ponto de
laçarem o artista brasileiro Rafael Albuquerque, desenhista da DC, numa polêmica
ano passado; ele foi forçado a descartar uma capa de HQ para Batgirl, que fazia alusão à Piada Mortal, onde Barbara aparece em
pose de sujeição ao Coringa, destoando do tom “powergirl” da série. A animação
de Piada Mortal deste ano reforçou a
hipótese do estupro, e o pesquisador quadrinista Will Brooker, depois disso,
vem encabeçando uma campanha de boicote à DC, segundo ele, pelo desenho animado
promover a cultura do estupro.
À esquerda a capa de Rafael Albuquerque para Batgirl criticada pelos fãs. No centro, uma fanarte mais radical como crítica ao boicote. À direita, cosplayers em apoio a Rafael Albuquerque. |
Apesar das polêmicas, a estrutura da graphic novel não
autoriza a interpretação do estupro e é alheia a ela. A cena original donde se
extrai a hipótese do sexo forçado integra o rol de objetividades do conto, pois
é contada pelo narrador-1, portanto com total credibilidade. Vejamos na tabela
essas objetividades.
Argumentos
|
O
que a estrutura demonstra
|
“Coringa
não se contentou com um voyeurismo. Ele estuprou Barbara aleijada”
|
O plano do Coringa é o tempo todo reiterado pela
ideia de “despir o sujeito da dignidade humana” como vingança por ter sido
ele, um dia, despido dela também. É por isso que, à pergunta “por que você
está fazendo isso?”, de Barbara, ele diz: “Pra provar uma coisa”. Ele quer
provar que uma pessoa, quando despida de sua dignidade e submetida à pressão
psicológica, enlouquece como ele:
– Fisicamente ridículo, ele [o homem comum, representado pelo
Comissário Gordon] possui, por outro
lado, uma deturpada visão de valores; observem o seu repugnante senso de
humanidade, a disforme consciência social e o asqueroso otimismo. [...] O
mais repulsivo de tudo são suas frágeis e inúteis noções de ordem e sanidade.
Se for submetido a muita pressão... Ele quebra! (– Coringa, p.36, 3ª e 4ª
quadrículas).
– É tudo uma piada! Tudo pelo que as
pessoas lutam e dão valor não passa de uma monstruosa e insensata anedota! (– Coringa, p.42, 6ª quadrícula).
A ideia de “despir o sujeito da dignidade
humana” é ilustrada na nudez fotografada de Barbara Gordon e na nudez
adestrada do seu pai, o Comissário Jim Gordon, ambas expostas ao público. A
roupa de “turista” que o Coringa usa na invasão à casa dos Gordon é uma
paródia da imagem tipológica de um turista genérico que gosta de fotografar
sua viagem, indicando com isso que o objetivo do serial killer era somente tirar fotos do corpo nu e imobilizado
da heroína, para mais tarde uni-las à nudez do pai, humilhando os dois. Só o
fato de ele alvejar à queima-roupa (e sem chance de defesa), despir e
fotografar Barbara imobilizada, já constitui, por si só, uma hedionda
violência sexual até ali jamais vista em HQs de super-heróis.
|
“O
Comissário Gordon sofreu um tratamento sádico-fetichista no parque de
diversões como extensão do estupro da filha”
|
O
tratamento que Gordon sofreu não foi de caráter sexual, e sim animal. Ele é
posto sob uma nova condição: a de um animal-atração de circo, uma bizarrice
do show de horrores que precisa ser amestrada. A. Moore inverte as posições
sociais aí; os atores bizarros do freak
show que fustigam Gordon passam a ser os “seres normais”, a plateia;
Gordon, o homem comum, passa a ser o “bicho esquisito”, a aberração a ser
vista. A coleira que o prende é uma coleira de adestramento de animais
selvagens, e não de filmes snuff. As
quadrículas não mostram os anões com lingeries; 2 usam uma fantasia sumária,
“a de anjinhos do mal”; dos 3, apenas 1 usa uma cinta-liga com meia 7/8; o
terceiro é uma anã vestida de colombina. O trio é careca, mas com uns fios de
cabelo em rabo-de-cavalo ao fim da cabeça, presos num laço. 2 deles usam ligaduras
de couro e ferro. São apenas o figurino estereotipado dos anões bizarros que
possuem fisionomia distorcida, típico do show de horrores, e não uma prática
de crossdressing. Quem considera
Barbara ter sido estuprada devido à nudez exposta, teria de aceitar que, por
motivos próximos, Jim Gordon também foi estuprado ou abusado sexualmente, já
que foi posto a nu; afinal, por que a lógica que induz a interpretar o
estupro de Barbara não induz ao estupro de Jim? Será que é porque Barbara é
mulher e Jim homem? Sustentar essa incoerência é ter um preconceito velado.
|
“A invasão do Coringa à casa dos
Gordon emula a cena de estupro em Laranja
Mecânica”
|
1) Tal
interpretação é externa à graphic novel, arbitrária. Alan Moore jamais disse
isso, Brian Bolland e a DC também não – é pois uma mera especulação.
2) O
roteiro de A. Moore propunha nu frontal e B. Bolland chegou a desenhá-lo, mas
os editores-chefes, Len Wein e depois Dennis O'Neil, vetaram . Se a DC barrou
um mero nu frontal, o que dizer da ideia implícita de estupro? Na cena da enfermaria, com diálogo entre Batman
e Barbara, a menção a um possível estupro sequer é dita por Barbara; o
discurso dela gira em torno do sequestro do pai. O médico com o investigador
Harvey Bullock também não mencionam estupro, o que poderia ser plausível no
laudo médico de Babs. Não se vê repercussão alguma do suposto estupro no desenrolar
do conto.
3) Na
cena do resgate no parque, com diálogo entre Batman e Comissário Gordon, este
menciona apenas as fotos nuas, sem abrir margem à possibilidade de estupro –
o que naturalmente poderia ser transcrito. Sua fala ao Batman denota postura
de um homem sensato, não atingido pela inevitável cólera por eventual estupro
de uma filha:
– Quero
que o prenda... Quero que o prenda pela lei! Pela lei, você ouviu? Precisamos
mostrar a ele! Temos de mostrar que o nosso jeito funciona!
|
➲ Há um fim?
Cumpre ressaltar que a cena final do conto – a piada que faz
rir o vilão e o herói – pertence ao rol das objetividades da trama por ser
narrada pelo narrador-1, portanto o relato é confiável. A interpretação que vem
ganhando força é a de Grant Morrison com o próprio Brian Bolland, segundo a
qual, ardilosamente e num surto de vingança, Batman estrangula ou degola
Coringa nas últimas quadrículas. A interpretação de Rich Johnston na qual Batman
e Coringa morrem envenenados será desconsiderada por apresentar uma estúpida
violação da obra artística. A interpretação do estrangulamento se apoia em 3
argumentos:
● Os
termos do título “Killing Joke” e a referenciação constante do termo “morte” da
parte do Cavaleiro das Trevas no decorrer do conto.
● Os
braços estendidos de Batman em direção ao pescoço do Coringa e seu subsequente silenciamento
na cena final.
● A
suspeita de uma mancha de sangue na poça d’água.
Embora seja tarefa
dispensável, julgo conveniente, antes de responder aos argumentos, analisar o
núcleo estrutural do tema central que é a piada mortal que o Palhaço do Crime
quer demonstrar aos outros personagens da trama. A análise do núcleo da
estrutura facilitará o entendimento para refutar Morrison, Bolland e seus
adeptos. A piada mortal, como se sabe, é uma teoria que o pierrô quer provar
aos seus rivais a partir da sua experiência pessoal: todas as pessoas são
potencialmente loucas porque o mundo, a vida, não possui sentido em si mesmo, é
tudo uma “piada de mau gosto” da existência (p.42); basta uma cadeia de eventos
negativos na vida de alguém – “um dia ruim” (p.41) – para esse alguém surtar
como o Coringa um dia surtou:
– Minha teoria está provada. Demonstrei que não há diferença entre mim e
outro qualquer! Só é preciso um dia ruim pra reduzir o mais são dos homens a um
lunático. Essa é a diferença entre o mundo e eu... Apenas um dia ruim (– Coringa, p.41, 2ª e 3ª
quadrículas).
A questão
agora é perceber como esse tema central da piada mortal é distribuído na
estrutura do conto, em termos técnicos, como se dá a sua “motivação”[12].
O tema central do conto – isto é, a teoria da piada mortal – é esquematizado em
duas grandes motivações, que são o núcleo da estrutura da trama: a motivação de relação e a motivação cíclica. A motivação de relação mostra a correlação entre a tragédia do comediante
e o plano do Coringa. Em seu plano, o vilão sai vingando seus traumas contra
os alvos que, no entender dele, foram responsáveis por ter se tornado aquilo
que é, assim:
TRAGÉDIAS
|
VINGANÇAS
|
● Fracasso
profissional como humorista
|
● Compra do circo/parque de
diversões
|
● Pobreza
|
● Roubo de somas de dinheiro
|
● Luto
paternal/conjugal
|
● Aleijamento de Barbara
Gordon (filha de Jim)/sequestro de Jim Gordon (pai de Barbara)
|
● Incidente
no tanque ácido
|
● Confronto com Batman
|
O bobo da corte julga que sua
condição de miserabilidade no passado se deveu à sociedade civil, por isso se
vinga dela, espoliando-a; julga ainda que foram as forças do acaso as
responsáveis por seu luto de família, e por isso quer transformar seu atentado
contra a família Gordon numa fatalidade; julga também que os culpados por seu
acidente na fábrica de baralho foram a polícia (com sua truculência) e o Batman
(com sua obstinação); culpa, enfim, o senso de justiça.
A motivação cíclica mostra o processo repetível que se dá na relação
de protagonismo–antagonismo entre Batman e Coringa. O conflito estabelecido
de herói x vilão em Piada Mortal quer
fazer entender que o Cavaleiro das Trevas e o Palhaço do Crime possuem algo em
comum (e por isso estão antagonicamente ligados um ao outro) – a tragédia ou
“um dia ruim”. “Batman
e Coringa são espelhos um do outro. Seus fins são diametralmente opostos e a
sisudez de um é o inverso da loucura do outro”[13].
Para construir essa motivação cíclica entre
protagonista e antagonista, o autor A. Moore empregou uma técnica chamada “anel
de ferro”[14], que
consiste em justapor segmentos de episódios de modo que o último toca ou se
fecha no primeiro, formando um “anel”, um círculo, um ciclo de acontecimentos
com um contínuo começo-meio-fim, dando a entender que a relação Batman-Coringa
é um ciclo que não finda, mas continua. Vejamos o anel de ferro no conto.
Ciclo dos Episódios em Anel de
Ferro
|
|
(Todos
os flashbacks) → noite e/ou chuva perpassam
as angústias do comediante
|
(Todo o conto) → noite e/ou chuva perpassam a
trama como estados presentes nas tragédias que moldaram o herói (Batman) e
seu inimigo (Coringa), funcionando como um “fluir, um desaguar” de uma nova
tragédia, dessa vez envolvendo, ao mesmo tempo, os dois personagens
|
1º
episódio (ida de Batman ao Asilo Arkham) → quadrículas ágrafas (sem balões e sem caixa de texto) no
início
|
20º episódio (três últimas
quadrículas) → quadrículas ágrafas no final
|
1º
episódio (ida de Batman ao Asilo
Arkham) → Batman,
Coringa-sósia e a polícia de Gotham juntos
|
20º episódio (chegada da viatura) → Batman, Coringa autêntico e a polícia de Gotham juntos
|
1º
episódio (conversa de Batman ao Coringa-sósia) → frase do narrador-1, “tinha dois caras no hospício...”
|
19º episódio (recitação da piada) → frase do Coringa,
“tinha dois caras no hospício...”
|
1º
episódio (conversa de Batman ao Coringa-sósia) → frase do Batman, “olá. Eu
vim conversar”
|
16º episódio (resgate do
Comissário Gordon)
→ frase do narrador-1,
“olá. Eu vim conversar”
|
13º
episódio (flashback) → noite de chuva que precede
a tragédia do comediante na fábrica de baralho
|
16º episódio (resgate do Comissário Gordon) → noite de chuva que
precede o confronto entre Batman e Coringa
|
13º
episódio (flashback) → recordações do Coringa em
um espelho d’água na poça da chuva
|
20º episódio (chegada da
viatura) → poça d’água da chuva noturna
sob um facho de luz do farol da viatura de polícia
|
1º
episódio (abertura) → chuvas em poças
|
20º episódio (desfecho) → chuvas em poças
|
Analisado o
núcleo da estrutura do grande tema que é a teoria da piada mortal, podemos
passar para os argumentos de Grant Morrison, Brian Bolland e Cia.
pró-estrangulamento.
»“Os termos do título “Killing Joke” e a referenciação constante do termo
“morte” da parte do Cavaleiro das Trevas no decorrer do conto” ━ Para os defensores do
estrangulamento de Batman contra o Coringa no final da graphic novel, a
primeira pista disso está no título da história, pois “killing” vem do verbo “matar” em inglês, estando no gerúndio,
“matando”. Muitos brasileiros anexaram à tradução o “joke” como sendo “piadista”, o que transliteraria “Killing Joke” como “matando o piadista”.
Um erro crasso. Os substantivos qualificadores de pessoas para profissões em inglês têm terminação /ER/ (“cosplayer”, “player”, “singer”), logo, “piadista” é “joker” – o termo correto usado para o
Coringa nos EUA –, e não “joke”; joke significa
“piada”, o que faz traduzir “Killing
Joke” como “matando a piada”. Essa expressão “matando a piada” é uma
parodização linguística que A. Moore faz à expressão “matando a charada”, ou
seja, deduzir, compreender o sentido da coisa. O título The Killing Joke (“matando
a piada”) é uma alusão à cena onde Batman
entende o sentido da piada recitada pelo Coringa no final do conto e passa
a gargalhar. No Brasil, The Killing Joke foi traduzido por um
sinônimo, “piada mortal”, mudando o sentido da alusão, agora, aludindo a todo o
plano da teoria que o Coringa quer provar. A constante referenciação de “morte”
por Batman no decorrer da história é um fato, mas não é prova de que ele tem
intenções de matar seu arqui-inimigo. A “morte” de que, vez outra, fala Batman,
é a morte mútua de ambos e não a de um só, um dado excluído pelos sensacionalistas.
Vejamos as ocorrências.
– “[...] Estive pensando muito ultimamente sobre você e eu. Sobre o que
vai acontecer conosco no fim. Nós vamos
matar um ao outro, não?
– “[...] Talvez você me mate.
Talvez eu te mate. Talvez mais cedo. Talvez mais tarde”.
– “[...] É sobre vida e morte que estou falando. Talvez a minha morte... Talvez a sua”.
– “[...] Nós estamos esgotando as alternativas... E ambos sabemos disso.
Talvez tudo dependa desta noite. Talvez esta seja a nossa última chance de parar. Se você não aproveitar, entraremos numa rota suicida. Uma rota
que vai levar nós dois à morte” {p.07, cena do Asilo Arkham; pp.37-39, cenas da luta entre Batman e
Coringa no parque; pp.46-47, cena do diálogo final que precede a piada}.
Os
sensacionalistas também desprezam as ocorrências que mostram o discurso de Batman
reforçando a intenção de não matar o Coringa.
– “Eu só queria estar certo de que realmente tentei mudar as coisas entre nós. Só uma vez”.
– “Nunca entendi por que nosso relacionamento
é tão mortal... Mas eu não quero ter sua
morte em minhas mãos”.
– “Não. Chega de Tiros. Eu
estou aqui. Vou cuidar dele a meu modo”.
CORINGA: – “[...] O que está esperando? [...] Por que não me manda pro inferno de
uma vez por todas e espera uma ovação da galera?”.
BATMAN: – “Porque não é isso que eu
quero... Porque estou cumprindo a lei. Eu não quero machucar você. Não quero
que nenhum de nós mate o outro no fim...”.
– “[...] Não precisa terminar
assim [...]. Talvez eu possa ajudar. Nós poderíamos trabalhar juntos. Eu
poderia reabilitar você. Não precisa ficar alienado de novo. Não precisa ficar
sozinho. Não precisamos nos matar” {p.07, cena do Asilo Arkham; pp.33-34, cena da perseguição ao Capuz
Vermelho; pp.46-47, cena do fim da luta entre Batman e Coringa no parque}.
Fica
demonstrado então que, pelo primeiro argumento, Batman não assassinou o
Coringa.
»“Os braços estendidos de Batman em direção ao pescoço do
Coringa e seu subsequente silenciamento na cena final” ━ Os defensores do estrangulamento
acrescentam a isso a onomatopeia da sirene da viatura. Segundo eles, o ruído da
sirene (“EEEEE...”) se mistura à onomatopeia das gargalhadas (“HAHAHAHA”), logo
depois silenciada pelo som da sirene, que, por sua vez, confunde-se com o
suposto ruído de um grito [do Coringa a se debater estrangulado] que também é
silenciado. Só que os braços do Homem-Morcego não aparecem na altura do pescoço
do bobo da corte, estão na altura do braço, abaixo do ombro, em gesto de
saudação, e os braços, as palmas das mãos do pierrô, estão posicionados para
baixo, não lembrando em nada um ato-reflexo de proteção (que os posicionaria
para cima, na direção do pescoço). Não obstante essa explicação gráfica, há
também a explicação do texto. Tomemos por extenso a piada contada pelo Coringa.
– Tinha 2 caras no hospício.
Uma noite, eles decidiram que não queria mais viver lá e resolveram escapar pra
nunca mais voltar. Aí eles foram até a cobertura do lugar e viram, ao lado, o
telhado de um outro prédio apontando pra lua... Apontando pra liberdade. Então
um dos sujeitos saltou sem problemas pro outro telhado, mas o amigo dele se
acovardou. Ele tinha medo de cair. Aí o primeiro cara teve uma ideia. Ele
disse: “Ei! Eu estou com minha lanterna aqui. Vou acendê-la sobre os vãos dos
prédios e você atravessa pelo facho de luz”! Mas o outro sacudiu a cabeça e
disse: “O que você acha que eu sou? Um louco? E se você apagar a luz quando eu
estiver no meio do caminho?”[15] (p.48).
Depois
da piada, Coringa ri sozinho. Em seguida é Batman quem ri. Em segundos, os dois
estão num frenesi de gargalhadas. Naquele instante o antagonismo dos dois
personagens se esvai, por um momento deixam de existir o herói e o vilão, o
humor – e não mais os traumas – é o que agora os liga, e a tradição de
violência que ambos carregam quando face a face é substituída por uma breve
trégua dada por uma excêntrica alegria à qual se rendem; ali, a parte e a
contraparte se igualam formando um todo. O ato de os dois maiores inimigos
gargalharem juntos como amigos revela uma situação insana, diz a um e ao outro
e ao leitor que tanto o Vigilante de Gotham quanto o pierrô é, em graus
diferentes, louco. Essa cena
pitoresca acontece em função do sentido da piada, metaforizada pelo Palhaço
do Crime, compreendida (“matada”) pelo Cavaleiro das Trevas. Na piada, os “dois caras no hospício”
são o Batman e o Coringa presos em suas próprias sociopatias que ora os ligam,
ora os opõem. A fuga dos dois loucos do hospício é a metáfora da proposta de Batman
e Coringa para trabalhar juntos, com o último abandonando a sociopatia que o
confina – como sugeriu Batman em uma das suas falas (p.47). O “sujeito que
saltou” destemido o telhado, autor do plano da fuga, é o próprio Batman, autor
do plano da reabilitação e da parceria com Coringa; o “amigo que se
acovardou” na hora de pular o prédio é o próprio Coringa, que não confia no
Homem-Morcego; ele sabe que o auxílio de um louco para outro louco é uma
redundante loucura, desconfia de que quando estiver entregue à reabilitação,
Batman trapaceie e o liquide. Por isso a frase “e se você apagar a luz
quando eu estiver no meio do caminho?”. O “facho de luz da lanterna”,
que atravessa os vãos do prédio entre o manicômio e o outro telhado, é a linha
abstrata que divide e separa o herói e o vilão, o Cavaleiro das Trevas e o
Palhaço do Crime; este teme que seu rival apague essa linha que os orienta,
eliminando sua vida. A “luz da lanterna” (que é a linha abstrata
divisória) aparece no conto como um efeito easter egg, simbolizada pelos
faróis de dois automóveis nas poças d’água, tanto no começo quanto
no fim do conto; o do começo é o farol do batmóvel, separando o
asfalto da Gotham City (“a liberdade”) do asfalto do Asilo Arkham (“o
manicômio”); o do fim é o farol da viatura policial, separando os pés de Batman
(“o sujeito que saltou”) e Coringa (“o amigo que se acovardou”). Nas
quadrículas desse fim, o facho de luz vem junto com a sirene e com a gargalhada
dos personagens, de modo que as onomatopeias se confundem. Existe aí uma gradação[16]
dos elementos de cena: há um momento em que as gargalhadas cessam para
continuar a sirene; depois, a sirene cessa para continuar o facho de luz; por
fim, o facho de luz cessa para continuar a escuridão da noite, a chuva e as
poças d’água, como no início do conto, compondo uma relação cíclica. É um
desfecho cíclico e, como ciclo, significa que a antagônica relação entre Batman
e Coringa se repetirá diversas outras vezes. Nesse ínterim, a permanência do
facho de luz da viatura na cena final (quadrículas 6-8), que é a simbologia da lanterna
na piada, indica que Batman (“o sujeito que saltou”) não apagaria a linha
abstrata divisória (“a luz da lanterna”) para o Coringa (“o amigo que se
acovardou”), reforçando, também nas entrelinhas, a certeza de que Batman não
matou seu arquivilão.
Fica demonstrado
então que, pelo segundo argumento, Batman não assassinou o Coringa.
»“A suspeita de uma mancha de sangue na poça d’água” ━ O argumento mais
absurdo dos sensacionalistas. Não é mancha de sangue sob os pés do Coringa, é
uma saliência de grama ainda não submersa pela poça d’água da chuva. Essa
saliência é vislumbrada já na 6ª quadrícula, em plano fechado; em seguida, nas
quadrículas 7-8, o plano se abre e a grama fica nítida. Talvez a “confusão”
tenha vindo da primeira colorização da HQ em 1988 por John Higgins, pintada em
tom terroso. A recolorização de 2008 por Brian Bolland pintou a grama de verde.
Fica demonstrado então que,
pelo terceiro argumento, Batman não assassinou o Coringa.
Para encerrar
essa parte, deixo a última página do roteiro datilografado de A. Moore sobre a
cena final de Piada Mortal, com
instruções ao desenhista B. Bolland. Nela nada conta ou sugere a morte do
Coringa.
Presumo que, defrontados
com o que não entendemos, seja mais cômodo e fácil inferir o que se supõe
quando não sabemos o que é. Porém, ao procedermos assim, tornamos o que pode
ser grandioso minimalista, simplificado, reduzido, querendo ajustar a grandeza
de algo ao tamanho de nossa ignorância; essa é a gênese de todos os
fundamentalismos interpretativos que fazem com a Bíblia, por exemplo, de
crentes fanáticos a ateus sensacionalistas. Só porque Jeannie não foi executada,
Barbara não foi estuprada e Coringa não foi degolado, Piada Mortal de Alan Moore não deixará de ser uma obra genial; pelo
contrário, ela é genial precisamente por não recorrer a esse já batido
expediente apelativo, conseguindo, sem ele, chocar, comover, falar de traumas,
sondar os âmagos, discutir sobre queda e superação, motivar para o bem e
repudiar o mal, com um enredo curto, porém sofisticado e bem construído, bem
mais do que se vê, do que se imagina e do que supõe. Se tal enredo recorresse
ao mais-do-mesmo, como pretendem os sensacionalistas, ele perderia seu caráter
genial, assim penso. Moore está muito além de Grant Morrison, muito além da “crítica
especializada”, além de nós, leitores. E tão elevado quanto a composição desse
enredo é o seu ensinamento posto na antítese Batman (o símbolo da força de vontade) x Coringa (o símbolo da força impotente a eventualidades): as
pessoas só ferem as outras porque, no fundo, têm o coração ferido.
________________________________________
(*) Professor de Língua Portuguesa,
Literatura Brasileira, Redação, escritor da Academia Maceioense de Letras,
articulista de imprensa. Nas horas vagas, é historiador do Homem-Morcego.
[1]
Para esta crítica uso a edição cartonada do relançamento da ed. Abril, de abril
de 1999, 52 páginas. Não possuo a versão de luxo capa-dura da ed. Panini
recolorida por Brian Bolland.
[2]
“No mesmo mês em que Piada Mortal
saiu, a edição Batgirl Special fez um
prelúdio onde ela abandonava a identidade de Batgirl”. Cf. slides 8 e 9 de
Omelete: 21 fatos de A Piada Mortal,bastidores, tretas e a importância da HQ do Batman.
[3]
Grant Morrison: “Ninguém entende o final. Na verdade, Batman mata o Coringa!
Por isso a edição se chama A Piada Mortal. Após a piada do Coringa, o Batman
quebra o pescoço dele. Em seguida, a risada termina e as luzes se apagam. É
quando ele atravessa essa linha, é a piada definitiva. […] Foi feito de uma
maneira em que as pessoas não tivessem certeza, mas é brilhante. Batman segura
o Coringa e quebra o seu pescoço, e então tudo acaba. As risadas param. É
bastante óbvio. É a última piada, é o final inevitável entre os dois. Está tudo
no título”. Ver Plano Crítico. Uma polêmica de Grant Morrison.
[5]
Batman: Gotham Knights #50-55; Batman
#66: Hush Returns. Wikipedia – The Free Encyclopedia: The Killing Joke, in. “Influence on Joker stories”.
[6]
“O horizonte de expectativas de um texto diz respeito às expectativas que o
leitor nutre em relação ao texto. O texto pode satisfazer o horizonte de
expectativas do leitor ou provocar o estranhamento e o rompimento desse
horizonte, em maior ou menor grau, levando-o a uma nova percepção da realidade.
A distância entre as expectativas do leitor e sua realização é denominada por
Jauss de ‘distância estética’ e determina ‘o caráter artístico de uma obra
literária’ (JAUSS, 1994, p. 31). Como o horizonte de expectativas varia no
decorrer do tempo, uma obra que surpreendeu pela novidade, pode tornar-se comum
e sem grandes atrativos para leitores posteriores; por isso, o autor entende
que as grandes obras serão aquelas que conseguirem provocar o leitor de todas
as épocas, permitindo novas leituras em cada momento histórico”. JAUSS, Hans
Robert. A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária. Trad. Sérgio Tellaroli (Série Temas, v.36).
São Paulo: Ática, 1994. Apud SILVA COSTA, Márcia Hávila Mocci da. Estética da Recepção e Teoria do Efeito (artigo).
Maringá: Universidade Estadual de Maringá – UEM, 2012, p.04.
[7]
“O Coringa é famoso por não ter uma história de origem definitiva. Às vezes ele se lembra de um jeito e às vezes
de outra forma, mas geralmente é aceita (embora não definitiva) a origem de
Piada Mortal. [...] Embora a história se esforce para salientar que é apenas uma
possível ‘história de origem’, ela tem sido amplamente aceita e adotada na
continuidade DC”. Cf. Wikipedia – The Free Encyclopedia: The Killing Joke, in. “Background and creation”. Cf. “Origin story – Villains: The Joker”.
[8]
Analepse é uma técnica de representação narrativa em que há alterações entre a
ordem dos eventos da história e a ordem em que os eventos são apresentados no
discurso, nesse caso, recuando no tempo. Em geral a analepse é um retorno ao
passado sob o enfoque interior de quem narra. A analepse de Brian Bolland no
Coringa não é interior, pois os enfoques da cena não partem da visão do
comediante, mas de um tipo de câmera externa, que possibilita ver objetos,
detalhes, ângulos, e até o próprio comediante em cada cena recordada.
[9]
TOMACHEVSKI, Boris. A Narrativa:
Motivação. In. Luiz Costa Lima. Teoria
da Literatura em suas Fontes. Rio de Janeiro: ed. Civilização Brasileira,
2002, vol. L, p. 184.
[10]
ECO. Umberto. Sobre Algumas Funções da
Literatura. In. Sobre a Literatura.
Rio de Janeiro: ed. Record, 2003, pp.20-21.
[11] Omelete:“21 fatos de A Piada Mortal, bastidores,tretas e a importância da HQ do Batman” (slide-7). Ver também Wikipedia – The Free Encyclopedia: The Killing Joke, in. “Background and creation”.
[12]
Motivação é o modo como as unidades de tema são dispostas na trama, obedecendo
a um esquema. LIMA, Luiz Costa. Teoria da
Literatura em suas Fontes. Rio de Janeiro: ed. Civilização Brasileira,
2002, vol. L, pp. 184-185.
[14]
Antonio Candido, crítico literário membro da Academia Brasileira de Letras,
explica que a técnica do anel de ferro foi usada pelo escritor Graciliano Ramos
(1892-1953) em sua obra “Vidas Secas”. Cf. CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão – Ensaios sobre
Graciliano Ramos, 3ª ed. Cap. IV: “50 anos de Vidas Secas”. Rio de Janeiro:
ed. Ouro Sobre Azul, 2006, p.149.
[15]
Os críticos e historiadores quadrinistas norte-americanos do Batman perceberam
uma coisa curiosa. A piada recitada pelo Coringa não foi elaborada pelo roteirista
Alan Moore, ela já era conhecida na sociedade. Sua recitação mais popular foi a
do comediante Red Skelton (1913-1997) num programa de stand up comedy chamado “The Ed Sullivan Show” em 1968. Isso significa que no quadrinho o Coringa não inventou a piada naquele
momento, ele estava citando o comediante Red Skelton. Por isso ele diz:
“Sabe... É engraçado... Essa situação me
lembrou uma piada...” (p.47).
[16]
Figura de linguagem caracterizada pela junção de elementos que se completam em
progressão: “o filme é ruim, é péssimo, é horrível, é horrendo”. Aumento ou
diminuição que acontece gradual e progressivamente.
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