François
Forestier escreve:
2
UM REI SEM COROA, pág. 21
[...] Marlon
Brando desce do trem, um chapéu de feltro vermelho na cabeça. A estação,
colossal, não o impressiona propriamente. Ele tem no bolso uma dezena de
dólares, não possui nada, soltou as amarras. O ano de 1943 é o ano de sua
revolta. O colégio militar de Shattuck, onde foi matriculado pelo pai? Nem
pensar em voltar para lá. A casa da família, sob o comando de Marlon pai? Nunca
mais. Marlon filho detesta qualquer tipo de autoridade, qualquer limitação,
qualquer disciplina ou obrigação. Não será militar, nem empregado, como seu
pai. Seu lema: “Nem Deus nem senhor.” Que será ele? Ator, talvez. Príncipe, por
que não? Rei, certamente.
Ele avança pela plataforma, entra no Main
Concurse, o imenso saguão. A multidão, densa, forma uma maré de movimento. Os
vendedores de jornais anunciam que a Operação Begônia – a libertação dos
prisioneiros nazistas na Itália – transcorreu bem. Em compensação, a revolta
racial em Los Angeles, os Zoot Suit Riots, deixou várias vítimas, todas
mexicanas, abatidas por marinheiros americanos. O almirante Nimitz prepara-se
para lançar um ataque de grande envergadura contra as ilhas Gilbert, em
especial Tarawa. Mussolini fundou a República Socialista Italiana de Salò. Em
Nova York, Hitchcock acaba de lançar um de seus melhores filmes, “A Sombra de
Uma Dúvida”. Em Paris, Jean Cocteau arrasa nas telas como L´Éternel Retour.
Howard Hughes, o milionário louco, luta contra a censura para conseguir exibir
“O Proscrito”, com Jane Russell, jovem atriz praticante da ciência cristã e
dona de um impressionante par de seios.
Brando hesita um pouco, joga a sacola nas
costas. Dá uma olhada na abóbada da estação, decorada pelo francês Helleu com
um afresco representando os símbolos do zodíaco. Vendedores de cigarros, de
sanduíches, policiais uniformizados, soldados de licença: mil destinos, mil
silhuetas, mil rostos se cruzam sob as constelações de Serpentário ou
Capricórnio. Ali, é possível recarregar as forças no Oyester Bar, arrumar
hospedagem ler o jornal, tomar uma ducha, engraxar os sapatos, paquerar,
comprar uma passagem para o fim do mundo, desaparecer. Marlon Brando remexe nas
moedas do bolso e se dirige a um garoto que ilustra os sapatos dos passantes,
num tamborete. Um pouco de cera, um pouco de água, um pano, mais um pouco de
água e tudo está resolvido. Preço: 10 cents. Marlon Brando tem os sapatos
engraxados e entrega 5 dólares ao menino. Coisa de rei.
Ele então vai à casa da irmã, em Greenwich
Village. Fran Brando é vendedora de sapatos e estuda pintura. Divide o
apartamento com outra jovem. Mas não faz mal, sempre dá para apertar um pouco.
A verdade é que Marlon Brando está fugindo.
O pai é um grosseiro. Comanda a casa como um
pequeno tirano. Sempre com uma bronca na boca, o pulso firme sempre pronto,
raramente sorri, vende materiais de firma para arquitetura e despreza a mulher,
que tem pretensões ao prazer. Ela queria ser atriz, a tolinha! Em Omaha, onde
os Brando vivem, Dorothy Brande negligencia o lar e os três filhos para se
apresentar em pequenas peças com um grupo de estudantes, entre eles um jovem
chamado Henry Fonda. Apelidada “Dodie”, ela é bem conhecida no bairro, onde
tempera a monotonia de sua vida com coquetéis – que até dezembro de 1933 seriam
proibidos como forma de bebida alcoólica, pela 18º emenda. A Lei Seca gera,
assim, alcoólatras anônimos, discretos, e mesmo secretos. Dodie é um exemplo.
Brando Sênior, por sua vez, orgulha-se de uma linhagem que segundo ele chega
aos huguenotes da Alsália. Ele afirma e repete que seu nome é uma deformação de
Brandeaux. Acontece que não há Brandeaux em Estraburgo nem em em lugar nenhum.
Os Brando seriam então de origem italiana? Sefaradita? Alemã? Existe de fato
uma cidade chamada Brandau, na Áustria... Mas como saber? Para esse pai
intratável, eles são franceses e ponto final. Os amigos da família acham que
ele tem um ar alemão, quando late.
Marlon pai só beija as duas filhas e o filho
uma vez por ano. No resto do tempo, os castiga. O filho lhe dá tédio. Ele o
entrega aos cuidados das tias, de outras tias, e em plena Grande Depressão, é
um dos raros sortudos com um bom emprego. Em 1930, consegue uma posição de
representante na Calcium Carbonate Corporation. Enquanto o país afunda na
miséria, enquanto aumentam as filas de sopas populares e os imigrantes são
espancados a caminha da Califórnia, Marlon pai passa a vender fosfato. Sua
mulher ensaia “Pigmalião”, a peça de George Bernard Shaw, para se distrair. Ela
também recita Shakespeare. E bebe.
Seu filho dorme com a babá, uma indonésia
chamada Ermi. Que prefere dormir nua. O pequeno Marlon adquire então o gosto
pelas peles exóticas.
A casa dos Brando está constantemente
impregnada de uma raiva surda, uma espécie de negrume elétrico, uma amargura desagradável.
Marlon filho vinga-se dessa família sem alegria furando pneus de carros,
queimando moscas, maltratando pombos e até escrevendo a palavra “merda” em
letras de fogo – com gasolina! – no quadro negro da escola. O garoto treina
para se juntar o que há de pior. Aperfeiçoa a arte de ser insuportável.
Em Nova York, o inverno de 1943 se anuncia
dos mais duros. A cidade vertical é engolfada por um vento que transforma os
transeuntes em corredores de maratona. Todo mundo se amontoa em um metrô.
Marlon Brando se diverte. Ele é de beleza inacreditável, nenhum gesto, nenhum
sorriso, nenhuma entonação que não sejam sedutores. Ele é a encarnação da
sensualidade. Logo o cinema haveria de captar essa graça: Nunca terá um tórax
mais erótico do que no filme “Um Bonde Chamado Desejo”. Mas por enquanto ele
freqüenta vagamente cursos de teatro, toca bongô com amigos, circula de blue
jeans pelos bairros de má fama, dorme com estudantes, garçonetes, costureiras,
mães de família. Uma delas, sul-americana, está sozinha: seu marido é soldado.
Ela tem dez anos a mais que o amante, mas quem se importa? Célia Webb tem um
emprego de vitrinista. Marlon, por sua vez, se encaixa na lenda do início
difícil, passagem obrigatória de toda biografia de estrela. Movimenta
elevadores, vende jornais, trabalha como garçom em bares e entrega dentaduras.
E depois vai para a New School fazer seu curso de teatro. Dispersa-se em
hobbies estranhos. Aprende a posição de lótus, houve ritmos africanos em boates
do Hárlem e até tenta se convencer de que pode torna-se esgrimista. Mas de nada
adianta: o que ele sabe fazer melhor é agradar. Às mulheres, aos homens e até
aos animais. Basta olhar para ele e qualquer um pensa em sexo. O que é ótimo:
ele tem uma libido infernal. O sexo é sua magia, seu poder, sua arte negra.
A vida inteira, ele será um “serial lover”. [...] Pág. 24
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