Realismo na Pop Art: Batman, um ente realista enquanto estética de arte, um ente fantasioso como uma releitura dos mitos e do folclore (parte 3 de 3)

 Wagner Williams Ávlis*


Em 09 de setembro do ano passado participei de um debate em um blog com o seguinte post: “Batman e seu pretenso realismo”[1]. O autor desenvolveu um texto muito bem articulado defendendo que Batman nada tinha de realista, sua dissertação era guiada pelas seguintes teses:
a) “Batman faz coisas que pessoas comuns jamais fariam” (sendo assim tão “realista” quanto James Bond, Sherlock Holmes, Indiana Jones, Rambo).
b)  “Um personagem ser aparentemente próximo a um homem comum não o faz ser necessariamente realista”.
c) “A noção de super-heróis não passa de uma fórmula para vender narrativas de um gênero eminentemente infanto-juvenil”.
            Em relação a a) e b), pelo que se leu até aqui, já se nota o grande equívoco (equívoco que vem se espalhando por meros consumidores de arte, não de quem conhece de arte); o engano é considerar que realismo em arte tenha a ver com a realidade objetiva, o que nunca foi nem será. Batman é realista por ser verossímil, e isso, atualmente, todo super-herói em quadrinhos é, já que eles vêm sendo abordados, em várias mídias, com as características do realismo literário. Quanto a c) é outro equívoco; a noção de super-herói não é algo infantil, mas algo do potencial imaginário de todos os homens de épocas, idades e papéis sociais diversos.
            Esse último equívoco tem uma justificativa: por 50 anos os super-heróis (e tudo a eles relacionado) foram tratados como “coisa de criança”, só encerrando tal associação com o advento da Era Moderna dos Quadrinhos (de 1986 à atualidade), que não só “adultizou” as HQs como tudo o que toca a ideia de herói. O revelador é que a Era Moderna não inventou isso; ela apenas fez retornar, devolveu aos super-heróis seu antigo status áureo dos tempos clássicos da História, até ali ofuscado pela visão de mercado simplista dos editores. Dali pra cá, os super-heróis passaram a ser redescobertos como uma atualização desdobrada dos antigos deuses das mitologias mundiais. Esses deuses não só explicavam a realidade constituída, mas eram referências psicológicas, modelos intelectivos para toda uma geração, para todo um povo, para toda uma cultura ou nação. As HQs heroínicas nos conectam com a mitologia em seu estado contemporaneizado, imanente, empírico, materialista, mas sem abrir mão do fantástico.
            O conceito de super-herói é de
▃▃▃▃▃▃ origem e natureza espirituais: as divindades salvadoras, as entidades infra-/sobre-naturais do bem e do mal (maniqueísmo), as criaturas de assombração das matas, os semideuses e as semideias, os seres híbridos errantes, o mágico xamânico, a feiticeira, os profetas, oráculos, videntes, adivinhos, médiuns, o rei (ou o faraó);
▃▃▃▃▃▃ origem e natureza militares: o espadachim, o cavaleiro, o guerreiro, o arqueiro, o viking, os guardiões, os arcanos, o navegador descobridor de mares, o pirata, o mercenário, a caçadora da tribo, a amazona, samurais, xoguns, ninjas, katanos.
A ideia de super-heróis, conforme provam os estudos em Filosofia/Antropologia, é uma herança atualizada dos panteões mitológicos da cultura humana.

          Numa roupagem mais contemporânea, essa essência de ser um herói reconfigurou-se nos tropeiros imperiais, no detetive, no policial, no bombeiro, no salva-vidas, nas forças armadas, na enfermeira, no médico, no cientista, no investigador, nos terroristas[2], nos serial killers[3], nos serviços de inteligência, nas forças-tarefas de resgate, nos esquadrões ostensivos, nos lutadores de artes marciais, nos atletas, nos artistas, nos famosos, em personalidades eminentes da História. Tudo isso, todo esse levante heroico, passou e passa pelo imaginário infantil, juvenil e adulto, moldando nossa psiquê, nossa personalidade, nosso caráter, nossas referências vitais. Os quadrinhos, numa época específica, somente usaram isso em função das crianças (que naturalmente sublimam essas referências), vestindo tudo em trajes de super-heróis mascarados e coloridos. Os quadrinhos se apropriaram do conceito de super-herói para a humanidade e contra o mal, mas não foram os quadrinhos que criaram tal conceito. Quando chegou o tempo viável, os artistas e a indústria fizeram senão devolver para às HQs a essência que o ser herói tinha antes mesmo de existirem gibis e crianças leitoras. Portanto, o conceito e a essência de super-herói é a priori e antes, infinitamente antes, das HQs, de modo que, se um dia elas (as HQs) se extinguissem, e se a infância não mais existisse, o imaginário do herói como exemplo e referência continuaria no âmago da humanidade adulta. Desejar, imaginar-se ou se inspirar em ser um super-herói constitui parte existencial do inconsciente coletivo da humanidade como um todo, e não apenas das crianças.


Winston Churchill (1874-1965), Primeiro-Ministro do Reino Unido, é considerado pelos historiadores um grandioso herói de guerra devido a seus esforços que contribuíram com a derrota da Alemanha na 2ª Guerra mundial.

Temos então que todos os super-heróis inseridos no modo de fazer arte da Era Moderna são realistas, de John Constantine a Tex Willer, de Spawn a X-Men, de Juiz Dredd a Batman, de modo que Batman não é mais realista do que os demais; ele é um personagem realista tanto quanto os demais. Quando ouvirmos coisa do tipo, consideremos então, num nível superficial e inconsciente, que estão querendo dizer isto: "O Batman é mais humano do que os outros heróis, e os dramas que o cercam se aproximam bastante de um humano real".

"Você poderia considerar um traje menos realista"
sátira do cartunista 
Dan Piraro, da Bizarro Comics, em seu conjunto de cartuns
“Feline Attraction”, que faz crítica precisamente à obsessão do público por um "realismo" (sinônimo de "realidade") em detrimento do fantástico nas HQs.

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(*) Professor de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Redação, escritor da Academia Maceioense de Letras, articulista de imprensa. Nas horas vagas, é historiador do Homem-Morcego.
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[2] Vale lembrar que a figura de Osama bin Laden, para a Al-Qaeda, para muitos árabes do Afeganistão e da Arábia Saudita, era vista como a de um herói.

[3] Nesse caso, como modelos para os vilões.

Referências Bibliográficas (das 3 partes)
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CHKLOVSKY, Viktor. Apud. JUNIOR, Arnaldo Franco. In. BOCINNI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria Literária, Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003, p.95.
COLLARES, Marco. Batman e Seu Pretenso Realismo. Artigo no blog Raio Laser: http://www.raiolaser.net/2015/07/batman-e-seu-pretenso-realismo.html?m=1
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