▕ Wagner Williams Ávlis*
Übermensch (“além-homem”) – expressão alemã utilizada pelo filósofo Friedrich
Nietzsche (1844-1900) em sua obra “Assim
Falou Zaratustra”[1]
(1883) – é uma ideia de superação de todo conceito de ser humano construído
pela cultura. Essa ideia também pode ser entendida como uma forma de humanizar
(isto é, sem recorrer a pressupostos metafísicos ou religiosos) o conceito divinizado
de super-homem clássico que era visto nos deuses, nos entes mágicos, nos
semideuses, nos heróis guerreiros e até nos reis. Übermensch é, sob o ângulo
imanente ou transcendente, algo idealista,
e não materialista.
É nisso que me fundo ao defender que os super-heróis das HQs – que são a
atualização dos mitos divinos/heroicos[2]
– não podem se esvaziar de sua constituição mágica-ideária em privilégio de um
realismo factual, verídico (para atender aos anseios de um público leigo
profundamente viciado pelo real persuasivo e sempre mais averso ao fantástico[3]).
Nesse sentido, o herói dos quadrinhos tem de se manter um übermensch, coerente com sua essência, caso contrário ficará
minimizado às atribuições do herói ordinário: um soldado, um policial, um
bombeiro, uma médica, uma enfermeira, um guarda-vidas. É por não serem heróis
ordinários que os heróis de nanquim recebem o prefixo “super” (“acima”, “além”,
“à frente”), “além-do-homem”, “sobre-humanos”, übermensch. Com Batman não é diferente. Apesar de humano e mortal,
Bruce Wayne está "acima, além, à frente" de um homem mortal comum,
treinou e elevou seu corpo, sua mente, seu espírito ao extremo da capacidade
convencional humana, domina dezenas de artes marciais, é uma sumidade em
perícia e investigação, é poliglota, erudito, domina uma série de tecnologias,
empregou sua fortuna ao bem comum e à justiça, possui uma inteligência
dotadíssima, é imbuído de um destemor anormal: não teme homem algum, não teme
seres alienígenas, entidades sobrenaturais, meta-humanos, seres híbridos ou metamorfos.
"Herói" é minimalista ao personagem; heróis são cotidianamente um
policial, um médico, um bombeiro, um salva-vidas, um líder espiritual/político,
mamãe e papai. Batman, dalgum modo, exerce tudo isso e mais um pouco, e,
portanto, em nível humano, ele é "super", um super-herói.
Esse aspecto já o torna um ser não-real, singular e inimitável no mundo
concreto (como todos os outros seres de papel e tinta das HQs); no plano
artístico, Batman é tão fictício (e portanto igual) a Superman, Deadpool,
Savage Dragon, Fantasma, Jesse Custer, Vampirella, etc., de sorte que só
podemos diferenciá-los dentro duma lógica fictícia idealista, e não duma
inteira lógica do real. A lógica fictícia idealista, em outros termos, aquilo
que faz sentido dentro da ficção obedecendo a um mínimo de lógica real, é
chamada pela teoria literária de verossimilhança
– tudo o que, se comparado ao mundo concreto, parece verdadeiro, provável ou possível de acontecer ou de se
explicar; o oposto é a inverossimilhança
– o absurdo, o não-crível, o que escapa à lógica do mundo real. Os
super-heróis quadrinísticos são, assim, personagens
verossímeis com histórias
verossímeis, sendo Batman somente mais um dentre tantos.
"Estamos adotando um visual mais realista" – sátira do cartunista
Dan Piraro, da Bizarro Comics, em seu conjunto de cartuns
“Feline Attraction”, que faz crítica precisamente à obsessão do público por um "realismo" (sinônimo de "realidade") em detrimento do fantástico nas HQs.
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(*) Professor de Língua Portuguesa,
Literatura Brasileira, Redação, escritor da Academia Maceioense de Letras, articulista
de imprensa. Nas horas vagas, é historiador do Homem-Morcego.
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[1]
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou
Zaratustra – Um Livro Para Todos e Para Ninguém. (Trad. Paulo César de
Souza). 4ª parte: O homem superior. São Paulo: ed. Companhia
das Letras, 2011, p.271.
[2]
“[...] Os Super-Heróis têm relação direta com a mitologia; suas virtudes,
sentimentos e fraquezas são destacadas ao extremo, deixando assim a assimilação
de conceitos filosóficos de maneira muito fácil” IRWIN, Willian (org.); MORRIS,
Matt & Tom. Super-Heróis e a
Filosofia: Verdade, Justiça e o Caminho Socrático. São Paulo: ed. Madras,2005,
sinopse.
[3]
Dentre várias expressões, essa obsessão pela realidade tangível e convincente é vista no público de HQs,
por exemplo, em discursos minuciosamente criticadores dos uniformes das
super-heroínas; ou se critica por serem tidos por “sexistas” ou por não se
adequarem à realidade física em caso de voos ou combates. Seguem três sites
como amostra: http://nerdpai.com/os-seios-das-heroinas/
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Referências Bibliográficas (das 3
partes)
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Rafael Menari; TEIXEIRA,
Nei
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Artigo no blog Raio Laser: http://www.raiolaser.net/2015/07/batman-e-seu-pretenso-realismo.html?m=1
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