Dando procedimento a transcrição, segue a
mais conhecida parte do mito Hércules. Só gostaria de realçar que esse texto é
uma transcrição do que foi escrito nesse livro, das páginas 98 á 117. Pretendo
em breve colocar para download filmes e documentários, vale acrescentar.
Coloquei em Arial, como o Aquaman, O Lego Emo sugeriu.
2 — o ciclo dos Doze Trabalhos;
3 — aventuras secundárias, praticadas no curso
dos Doze Trabalhos;
4 — gestas independentes do ciclo anterior; e 5
— ciclo da morte e da apoteose do herói.
LEÃO
DE NEMÉIA
“Neméia,
nome de uma cidade e de um bosque na Argólida, foi o cenário do primeiro
trabalho do herói. O Leão de Neméia era um monstro de pele invulnerável, filho
de Ortro (Esse era um
cão de duas cabeças...),
e este, filho de Tifão e de Équidna, um outro monstro, sob forma de mulher-serpente.
Esse Leão possuía uns irmãos célebres e terríveis: Cérbero, Hidra de Lerna, Quimera, Esfinge de Tebas… Criado pela
deusa Hera ou à mesma emprestado pela deusa-Lua "Selene", para provar
Héracles, o monstro passava parte do dia escondido num bosque, perto de Neméia.
Quando deixava o esconderijo, o fazia para devastar toda a região,
devorando-lhe os habitantes e os rebanhos. Entocado numa caverna, com duas
saídas, era quase impossível aproximar-se dele. O herói atacou-o a flechadas,
mas em vão, pois o couro do leão era invulnerável.
Astutamente, fechando uma das saídas, o filho de Zeus o tonteou a golpes de
clava e agarrando-o com seus braços possantes, o sufocou. Com o couro do
monstro o herói cobriu os próprios ombros e da cabeça do mesmo fez um capacete.
Não insistimos em outros pormenores
acerca desta primeira tarefa de Héracles, porque todos os episódios relativos
ao Leão de Neméia, inclusive a parte simbólica, foram estudados no Vol.
I, p. 255. Igualmente se mostrou no Vol. II, p. 148-150, a importância
da posse do crânio do inimigo abatido. Quanto à pele, com que o herói
cobriu os ombros, além da invulnerabilidade, possuía como toda pele de
determinados animais um mana, uma enérgeia muito forte, simbolizando,
desse modo, a "insígnia da combatividade vitoriosa" do filho de
Alcmena.
HIDRA
DE LERNA
Como
já se mostrou no Vol. I, p. 243, também este monstro com seu simbolismo
foi bem estudado, pelo que nos abstemos de fazer repetições inúteis. Desejamos
tão-somente acrescentar a interpretação simbólica e psicológica de Paul Diel, que nos parece muito
pertinente. Para o autor de Le Symbolisme dans la Mythologie Grecque, p.
208, "as múltiplas cabeças do monstro de corpo de serpente configuram os
vícios múltiplos, nos quais se prolonga o 'corpo' da perversão, a vaidade.
Vivendo num pântano, a Hidra é particularmente caracterizada como símbolo dos
vícios banais. Enquanto o monstro viver, enquanto a vaidade não for dominada,
as cabeças, símbolo dos vícios, renascerão, mesmo que, por uma vitória
passageira, se consiga cortar uma ou outra. Para vencer o monstro, Héracles usa
a espada, arma de combate espiritual, conjugada ao archote, que cauteriza as
feridas, a fim de que, uma vez cortadas, as cabeças não mais possam renascer. O
archote simboliza a purificação sublime".
JAVALI
DE ERIMANTO
Erimanto
é uma escura montanha da Arcádia, onde se escondia um monstruoso javali, que
Héracles deveria trazer vivo ao rei de Argos. Com gritos poderosos, o herói
fê-lo sair do covil e, atraindo a besta-fera para uma caverna coberta de neve,
o fatigou até que lhe foi possível segurá-lo pelo dorso e conduzi-lo ao primo.
Ao ver o monstro, Euristeu, apavorado, escondeu-se no jarro de bronze, de que
se falou mais acima.
O
simbolismo do javali está diretamente relacionado com a tradição hiperbórea,
com aquele nostálgico paraíso perdido, onde se localizaria a Ilha dos
Bem-Aventurados. Nesse enfoque, segundo comentam J. Chevalier e Alain
Gheerbrant, o javali configuraria o poder espiritual, em contraposição ao urso,
símbolo do poder temporal. Assim concebida, a simbólica do javali estaria
relacionada com o retiro solitário do druida nas florestas: nutre-se da glande
do carvalho, árvore sagrada, e a javalina com seus nove filhotes escava a terra
em torno da macieira, a árvore da imortalidade. A respeito de toda a simbólica
do javali já se falou no Vol. II, p. 65-66.
Héracles,
apoderando-se do símbolo do poder espiritual, escala mais um degrau no rito
iniciático.
CORÇA
DE CERINIA
Essa
corça de Cerinia, segundo Calímaco, Hino a Ártemis, era uma das cinco
que Ártemis encontrou no monte Liceu. Quatro a deusa as atrelou em seu carro e
a quinta a poderosa Hera a conduziu para o monte Cerinia, com o fito de servir
a seus intentes contra Héracles. Consagrada à irmã gêmea de Apolo, esse animal,
cujos pés eram de bronze e os cornos de ouro, trazia a marca do sagrado e,
portanto, não podia ser morta. Mais pesada que um touro, se bem que
rapidíssima, o herói, que deveria trazê-la (ops) viva a Euristeu, perseguiu-a durante um ano.
Já exausto, o animal buscou refúgio no monte Artemísion, mas, sem lhe dar
tréguas, Héracles continuou na caçada e, quando a corça tentou atravessar o rio
Ládon, na Arcádia, ferindo-a levemente, Alcides logrou apoderar-se dela. Quando
já se dirigia a Micenas, encontrou-se com Apolo e Ártemis. Estes tentaram
tirar-lhe o animal, mas afirmando cumprir ordens de Euristeu, o filho de
Alcmena conseguiu, por fim, prosseguir seu caminho.
Píndaro
apresenta uma versão acentuadamente mística dessa longa perseguição. Consoante
o poeta tebano, Olímpicas, 3,29 sqq, Héracles teria seguido a corça em
direção ao norte, através da Ístria, chegando ao país dos Hiperbóreos, onde, na
Ilha dos Bem-Aventurados, foi benevolamente acolhido por Ártemis.
A
interpretação pindárica é como que uma antecipação da única tarefa realmente
importante do herói, sua liberação interior. Sua estupenda vitória, após um ano
de tenaz perseguição, apossando-se da corça de cornos de ouro e pés de bronze,
tendo chegado ao norte e ao céu eternamente azul dos Hiperbóreos, configura
a busca da sabedoria, tão difícil de se conseguir. A simbólica dos pés
de bronze há que ser interpretada a partir do próprio metal. Enquanto sagrado,
o bronze isola o animal do mundo profano, mas, enquanto pesado, o
escraviza à terra.
Têm-se
aí os dois aspectos fundamentais da interpretação: o diurno e o noturno dessa
corça. Seu lado puro e virginal é bem acentuado, mas o "peso do
metal" poderá pervertê-la, fazendo-a apegar-se a desejos grosseiros, que
lhe impedem qualquer vôo mais alto.
Paul
Diel vai um pouco mais longe na hermenêutica da corça dos pés de bronze: "A
corça, como o cordeiro, simboliza uma qualidade do espírito, que se contrapõe à
agressividade dominadora. Os pés de bronze, quando aplicados à sublimidade,
configuram a força da alma. A imagem traduz a paciência e o esforço na
consecução da delicadeza e da sensibilidade sublime, especificando, igualmente,
que essa mesma sensibilidade representada pela corça, embora se oponha à
violência, possui um vigor capaz de preservá-la de toda e qualquer fraqueza
espiritual" que está bem configurada nos pés de bronze.
De
outro lado, embora consagrada a Ártemis, a corça, no mito grego, é propriedade
de Hera, deusa protetora do amor legítimo e do himeneu. Símbolo essencialmente
feminino, o brilho de seus olhos é, muitas vezes, cotejado com a limpidez do
olhar de uma jovem. O Cântico dos Cânticos usa o nome da corça numa
fórmula de esconjuro, para preservar a tranqüilidade do amor:
"Eu
vos conjuro, filhas de Jerusalém, pelas gazelas e corças do campo, que não
perturbeis nem acordeis a minha amada, até que ela queira (2,7)".
AVES
DO LAGO DE ESTINFALO
Numa
espessa e escura floresta, às margens do lago de Estinfalo, na Arcádia, viviam
centenas de aves de porte gigantesco, que devoravam os frutos da terra, em toda
aquela região. Segundo outras fontes, eram antropófagas e liquidavam os
passantes com suas penas aceradas, de que se serviam como de dardos mortíferos.
A dificuldade consistia em fazê-las sair de seus escuros abrigos na floresta.
Hefesto, a pedido de Atená, fabricou para o herói umas castanholas de bronze.
Com o barulho ensurdecedor desses instrumentos, as aves levantaram vôo e foram
mortas com flechas envenenadas com o sangue da Hidra de Lerna.
Uma
interpretação evemerista do mito faz dessas aves filhas de um certo herói
Estinfalo. Héracles as matou, porque lhe negaram hospitalidade, concedendo-a,
logo depois, a seus inimigos, os moliônides, isto é, Ctéato e Êurito.
Com
suas flechas certeiras, símbolo da espiritualização, Héracles liquidou as Aves
do Lago de Estinfalo, cujo vôo obscurecia o sol. Como o pântano, o lago
reflete a estagnação. As aves que dele levantam vôo simbolizam o impulso de
desejos múltiplos e perversos. Saídos do inconsciente, onde se haviam
estagnado, põem-se a esvoaçar e sua afetividade perversa acaba por ofuscar o
espírito.
A
vitória do filho de Alcmena é mais um triunfo sobre as "trevas".
ESTÁBULOS
DE AUGIAS
Rei de
Élis, no Peloponeso, Augias, filho de Hélio, era dono de um imenso rebanho.
Mas, tendo deixado de limpar seus estábulos durante trinta anos, provocou a
esterilidade nas terras da Élida, por falta de estrume. Para humilhar o primo,
Euristeu lhe ordenou que fosse limpá-los.
O
herói, antes de iniciar sua tarefa, pediu a Augias, como salário, um décimo do
rebanho, comprometendo-se a remover a montanha de estrume num só dia. Julgando
impossível a empresa, o rei concordou com a exigência feita. Tendo desviado
para dentro dos estábulos o curso de dois rios, Alfeu e Peneu, a tarefa foi
executada com precisão e espantosa rapidez. Augias, no entanto, deixou de
cumprir a promessa e como o herói tomara por testemunha o jovem Fileu, o rei
expulsou de seu reino ao filho de Alcmena.
Para
se vingar, o herói reuniu um exército de voluntários da Arcádia e marchou
contra Élis. Augias, tendo colocado à frente das tropas seus dois sobrinhos,
Ctéato e Êurito, os moliônides, conseguiu repelir o ataque de Héracles, que,
além do mais, quase perdeu seu irmão Íficles, que foi gravemente ferido em
combate. Mais tarde, todavia, quando da celebração dos terceiros Jogos
Ístmicos, como os habitantes de Élis tivessem enviado os moliônides para
representá-los nos Agônes, o herói, como se comentou na Introdução,
Cap. I, os matou numa emboscada. Não satisfeito, organizou uma
segunda expedição contra a Élida: tomou a cidade de Elis, matou Augias e entregou
o trono a Fileu, que, anteriormente, testemunhara a seu favor. Foi após essa
vitoriosa campanha contra Augias, que Héracles
fundou os Jogos Olímpicos, como recorda Píndaro, Olímpicas,
10,25sq.
Segundo
Diel, os estábulos do rei Augias "configuram
o inconsciente. A estrumeira representa a deformação banal. O herói faz
passar as águas do Alfeu e Peneu através dos estábulos imundos, o que simboliza
a purificação. Sendo o rio a imagem da vida que se escoa, seus acidentes
sinuosos refletem os acontecimentos da vida "corrente" (...). Irrigar
o estábulo com as águas de um rio significa purificar a alma, o inconsciente da
estagnação banal, graças a uma atividade vivificante e sensata".
Estes
seis primeiros Trabalhos de Héracles têm por cenário, já se mostrou linhas
acima, em 3, a própria Hélade; os seis últimos, mais difíceis e penosos —
afinal a iniciação é um progresso na dor — levarão o filho de Alcmena para
outras paragens. Trata-se, no fundo, de um caminhar em direção a Thánatos, conforme
se há de mostrar.
TOURO
DE CRETA
Minos,
rei de Creta (Não sei porquê, mas esse
Minos tem um certo fetiche por touros), prometera sacrificar a Posídon tudo quanto
de especial saísse do mar. O deus fez surgir das espumas um touro maravilhoso.
Encantado com a beleza do animal, o rei mandou levá-lo para junto de seu
rebanho e sacrificou a Posídon um outro. Irritado, o deus enfureceu o touro,
que saiu pela ilha, fazendo terríveis devastações. Foi este animal feroz, que
lançava chamas pelas narinas, que Euristeu ordenou a Héracles de trazer vivo
para Micenas. Não podendo contar com o auxílio de Minos, que se recusou a
ajudá-lo, o herói, segurando o monstro pelos chifres, conseguiu dominá-lo e,
sobre o dorso do mesmo, regressou à Hélade. Euristeu o ofertou à deusa Hera,
mas esta, nada querendo que proviesse de Héracles, o soltou. O animal percorreu
a Argólida, atravessou o Istmo de 82. Ibid., p. 207sq. Corinto e ganhou
a Ática, refugiando-se em Maratona, onde Teseu, mais tarde, o capturou e
sacrificou a Apolo Delfínio.
Como
já se discorreu sobre a simbologia do Touro no Vol II, p. 35sqq. resta-nos
apenas acrescentar que a vitória de Héracles sobre o Touro feroz, que lançava
chamas pelas narinas, é o triunfo sobre a força bruta da tendência dominadora.
A cada
trabalho o grande herói vai se aperfeiçoando e se encontrando…
ÉGUAS
DE DIOMEDES
Diomedes,
filho de Ares e Pirene, o cruel rei da Trácia, possuía quatro éguas, Podargo,
Lâmpon, Xanto e Dino, que eram alimentadas com as carnes dos estrangeiros que
as tempestades lançavam às costas da Trácia. Euristeu ordenou a Héracles de pôr
termo a essa prática selvagem e trazer as éguas para Argos. O herói foi
obrigado a lutar com Diomedes, que, vencido, foi lançado às suas próprias
bestas antropófagas. Após devorarem o rei, as éguas estranhamente se acalmaram
e foram, sem dificuldade alguma, conduzidas a Micenas. Euristeu as deixou em
liberdade e as mesmas acabaram sendo devoradas pelas feras do monte Olimpo.
Foi
durante a caminhada do herói em direção à Trácia que se passou o episódio da
ressurreição de Alceste, tema de que se aproveitou Eurípides em sua
tragédia homônima, que traduzimos para Bruno Buccini Editor, Rio de Janeiro,
1968. Quando Héracles passou pela Tessália, mais precisamente por sua capital,
Feres, o luto se apossara do palácio real. É que o rei, Admeto, tendo sido
sorteado pelas Queres para baixar ao Hades, conseguira, por intervenção de
Apolo, que as Moiras o poupassem, até novo sorteio, se alguém se oferecesse
para morrer em seu lugar. Acontece que a empresa não era fácil e até mesmo os
pais de Admeto, já idosos, recusaram-se a fazer tão grande sacrifício pelo
filho. Somente Alceste, sua esposa, apesar de jovem e bela, num gesto
heróico, espontaneamente se prontificou a dar a vida pelo marido. Quando Admeto
se preparava para solenemente celebrar as exéquias da esposa, eis que surge
Héracles, pedindo-lhe hospitalidade. Não obstante a tristeza e o luto que
pesavam sobre o palácio real, o rei de Feres acolheu dignamente o filho de
Alcmena. Ao ser informado, um pouco mais tarde, do que se passava, Héracles,
apelando para seus braços possantes, dirigiu-se apressadamente para o túmulo da
rainha. E foi num combate gigantesco que o grande herói levou de vencida a Thánatos,
a Morte, arrancando de suas garras a esposa de Admeto, Alceste, mais jovem
e mais bela que nunca.
Para Paul
Diel, do ponto de vista simbólico, sendo as éguas, no relato em pauta,
"símbolo da perversidade, as éguas antropófagas de Diomedes configuram a
perversidade que devora o homem: a banalização, causa da morte da alma".
CINTURÃO
DA RAINHA HIPÓLITA
Foi a
pedido de Admeta, filha de Euristeu e sacerdotisa de Hera argiva, que Héracles,
acompanhado por alguns voluntários, inclusive Teseu, seguiu para o fabuloso
país das Amazonas, a fim de trazer para Admeta o famoso Cinturão de Hipólita,
rainha dessas guerreiras indomáveis. Tal Cinturão havia sido dado a Hipólita
pelo deus Ares, como símbolo do poder temporal que a Amazona exercia sobre seu
povo. A viagem do herói teve um incidente mais ou menos sério. Tendo feito
escala na ilha de Paros, dois de seus companheiros foram assassinados pelos
filhos de Minos. É que Nefálion, um dos filhos do rei cretense com a ninfa
Pária, havia se estabelecido na ilha supracitada com seus irmãos Eurimedonte,
Crises e Filolau e com dois sobrinhos, Alceu e Estênelo. Pois bem, foram esses
filhos de Minos que, com seu gesto impensado, provocaram a ira de Héracles,
que, após matar os quatro irmãos, ameaçou exterminar com todos os habitantes de
Paros. Estes mandaram-lhe uma embaixada, implorando-lhe que escolhesse dois cidadãos
quaisquer da ilha em substituição aos dois companheiros mortos. O herói aceitou
e, tendo tomado consigo Alceu e Estênelo, prosseguiu viagem, chegando ao porto
de Temiscira, pátria das Amazonas. Hipólita concordou em entregar-lhe o
Cinturão, mas Hera, disfarçada numa Amazona, suscitou grave querela entre os
companheiros do herói e as habitantes de Temiscira. Pensando ter sido traído
pela rainha, Héracles a matou. Uma variante relata que as hostilidades se
iniciaram, quando da chegada de Alcides. Tendo sido feita prisioneira uma das
amigas ou irmã de Hipólita, Melanipe, a rainha das Amazonas concluiu tréguas
com o filho de Alcmena e concordou em entregar-lhe o Cinturão em troca da
liberdade de Melanipe.
Foi no
decorrer dessa luta, relata uma variante, que Teseu, por seu valor e
desempenho, recebeu de Héracles, como recompensa, a Amazona Antíope.
83. Ibid.,
p. 208. No retorno dessa longa expedição, o herói e seus companheiros
passaram por Tróia, que, no momento, estava assolada por uma grande peste. O
motivo do flagelo, já relatado no Vol. II, p. 89, foi a recusa do rei
Laomedonte em pagar a Apolo e a Posídon os serviços prestados por ambos na
construção das muralhas de Ílion. Enquanto Apolo lançara a peste contra Tróada,
Posídon fizera surgir do mar um monstro que lhe dizimava a população.
Consultado o oráculo, este revelou que a peste só teria fim se o rei expusesse
sua filha Hesíona para ser devorada pelo monstro. A jovem, presa a um rochedo,
estava prestes a ser estraçalhada pelo dragão, quando Héracles chegou. O herói
prometeu a Laomedonte salvar-lhe a filha, se recebesse em troca as éguas que
Zeus lhe ofertara por ocasião do rapto de Ganimedes. O rei aceitou, feliz, a
proposta do herói e este, de fato, matou o monstro e salvou Hesíona. Ao
reclamar, todavia, a recompensa prometida, Laomedonte se recusou a cumpri-la.
Ao partir de Tróia, Héracles jurou que um dia voltaria e tomaria a cidade. E o
cumpriu, segundo se verá.
Para
Paul Diel a vitória de Héracles sobre as Amazonas é extremamente significativa,
porquanto se trata de "um símbolo representativo de um dos dois aspectos
da escolha nefasta que concerne necessariamente quer à mulher muito dominadora,
quer à muito banal. Ora, as Amazonas são simbolicamente caracterizadas como
mulheres assassinas de homens: no fundo, desejam substituí-los, rivalizar com
os mesmos, opondo-se a eles, combatendo-os, ao invés de completá-los. Já que
todo simbolismo se reporta à vida da alma, a Amazona, assassina da alma, é,
indubitavelmente, a mulher que se opõe, de maneira doentia, histérica, à
qualidade essencial, a única que interessa ao mito: o impulso espiritual. Esse
antagonismo embota a força essencial, própria da mulher, a qualidade de amante
e de mãe, o calor da alma. Existem, claro está, mulheres, cuja força espiritual
ultrapassa a da maioria dos homens. A exclusividade da escolha só tem
importância para o homem e a mulher dotados de qualidades que ultrapassam a
norma e que, para se desenvolver, exigem a complementação; e o que o mito
estigmatiza através do símbolo "Amazona" (o que a mulher neurótica
realiza) é a ausência da virtude especificamente feminina e a predominância de
uma rivalidade exaltada, puramente imaginativa, com a virtude masculina. O
símbolo "Héracles, vencedor da rainha das Amazonas", exclui da
história do herói, atraído pela banalização, o atrativo contagiante de um tipo
feminino, que, normalmente, é perigoso para os heróis sentimentais". Os Trabalhos
de Héracles, tomados em bloco, configurariam a luta contra a banalização. Paul
Diel preocupou-se, todavia, apenas com o lado "amazônico" da excursão
vitoriosa do herói, mas deixou de lado o motivo principal da viagem, a busca do
Cinturão de Hipólita.
Na
realidade, o Cinturão, conforme nos mostram Chevalier e Gheerbrant,
possui um simbolismo muito rico. Vamos tentar sintetizá-lo. O cinturão ou
simplesmente o cinto, atado em torno dos rins, por ocasião do
nascimento, religa o um ao todo, ao mesmo tempo que liga o
indivíduo. Toda a ambivalência de sua simbólica está resumida nestes dois
verbos, ligar e religar.
Religando,
o
cinto dá maior segurança e tranqüilidade, reanima, transmite força e poder; ligando,
acarreta, ao revés, a submissão, a dependência e, por conseguinte, a
restrição, escolhida ou imposta, da liberdade. Materialização de um
engajamento, de um juramento, de um voto feito, o cinto assume um valor
iniciático, sacralizante e, materialmente falando, torna-se uma insígnia
visível, as mais das vezes honrosa, que traduz a força e o poder de que está
investido seu portador. Para não multiplicar os exemplos, é bastante observar
as "faixas" dos judocas, de cores variadas e significativas, os
cinturões, em que se penduram as armas e os inumeráveis cintos votivos,
iniciáticos e de aparato, mencionados pelas tradições e ritos de todas as
culturas.
Na Bíblia,
o cinto é símbolo de uma união estreita, de um vínculo permanente, no duplo
sentido de união na bênção e de tenacidade na maldição (Sl 108,18-19):
Vestiu-se
de maldição como de veste,
e
ela penetrou como água nas suas entranhas,
e
como azeite nos seus ossos.
Que
ela seja para ele o vestido com que se cobre,
e
como o cinto com que se cinge.
Os
Judeus celebravam a Páscoa, consoante a ordem de Javé, com um cinto em torno
dos rins, pois que o cinto, como está em Jr 13,1-11, é um elo
precioso que une Javé a seu povo. A composição simbólica do cinturão espelha a
vocação de seu portador, configura a humildade ou o poder, designando sempre
uma escolha e um exercício concreto dessa escolha. Quando Cristo diz a Pedro
que, jovem, ele se cingia, mas um tempo viria em que outro o haveria de cingir
(Jó 21,18), isto significa também que Pedro podia outrora escolher seu
destino, mas que, depois, ele compreenderia o apelo da vocação:
Em
verdade, em verdade te digo: quando eras mais moço, cingias-te e ias aonde
desejavas; mas quando fores velho, estenderás as tuas mãos, outro te cingirá e
te levará para onde tu não queres.
O
cinto é igualmente apotropaico: protege contra os maus espíritos, como os
"cinturões" de proteção em torno das cidades as defendem dos
inimigos.
Para
Auber, citado por Chevalier e Gheerbrant, "cingir os rins nas caminhadas
ou em toda e qualquer ação viva e espontânea significava para os antigos uma
prova de energia e, por conseguinte, de desprezo pela frouxidão e indolência;
era ainda um sinal de continência nos hábitos e de pureza no coração (...).
Para S. Gregório, cingir os rins era um símbolo de castidade".86 É nesse
sentido que, ligado à continência, pode-se interpretar o cinto de couro ou
corda, usado em certas ordens e congregações religiosas. Mas o símbolo não pára
por aí, pois que os rins, consoante a Bíblia, configuram também não só o
poder e a força, mas igualmente a justiça, como diz Isaías
11,5:
A
justiça será o cinto dos seus lombos e a fé o talabarte de seus rins.
Símbolo
de ligar e religar, símbolo de humildade e submissão, símbolo do poder e da
justiça, mas igualmente do "poder castrador", símbolo da continência,
o Cinturão de Hipólita passou do "poder castrador", para o poder de
continência: deixou de ser visado por uma Amazona, para guarnecer os rins de
Admeta, sacerdotisa de Hera.
BOIS
DE GERIÃO
Frente para a retaguarda! |
Gerião,
filho de Crisaor e, portanto, neto de Medusa, era um gigante monstruoso de três
cabeças, que se localizavam num corpo tríplice, mas somente até os quadris.
Habitava a ilha de Eritia, situada nas brumas do Ocidente, muito além do imenso
Oceano, segundo já se falou no Vol. I, p. 241. Seu imenso rebanho de bois
vermelhos era guardado pelo pastor Eurítion e pelo monstruoso cão Ortro, filho
de Tifão e Équidna, não muito longe do local onde também Menetes pastoreava o
rebanho de Plutão, o deus dos mortos. Foi por ordem de Euristeu que Héracles
deveria se apossar do rebanho do Gigante e trazê-lo até Micenas. A primeira
dificuldade séria era atravessar o Oceano. Para isso tomou por empréstimo a Taça
do Sol. Tratava-se, na realidade, de uma Taça gigantesca, em que
Hélio, o Sol, todos os dias, à noitinha, após mergulhar nas entranhas
catárticas do Oceano, regressava a seu palácio, no Oriente. A cessão da Taça
por parte de Hélio não foi, entretanto, espontânea. O herói já caminhava, havia
longo tempo, pelo extenso deserto da Líbia, e os raios do Sol eram tão quentes
e o calor tão violento, que Héracles ameaçou varar o astro com suas flechas. Hélio,
aterrorizado, emprestou-lhe sua Taça. Chegando à ilha de Eritia,
defrontou-se, de saída, com o cão Ortro, que foi morto a golpes de clava.
Em
seguida, foi a vez do pastor Eurítion. Gerião, posto a par do acontecido pelo
pastor Menetes, entrou em luta com o herói, às margens do rio Ântemo, mas foi
liquidado a flechadas. Terminadas as justas, embarcou o rebanho na Taça do
Sol e reiniciou a longa e penosa viagem de volta, chegando primeiramente a
Tartesso, cidade da Hispânia Bética, localizada na foz do rio Bétis. Foi
durante todo esse tumultuado retorno à Grécia, que se passou a maioria das
gestas extraordinárias, que são atribuídas ao filho de Zeus no Mediterrâneo
ocidental. Já em sua viagem de ida libertara a Líbia de um sem-número de
monstros e, em seguida, para lembrar sua passagem por Tartesso, ergueu duas
colunas, de uma e de outra parte, que separa a Líbia da Europa, as chamadas Colunas
de Héracles, isto é, o Rochedo de Gibraltar e o de Ceuta.
Em seu
caminho de volta, foi diversas vezes atacado por bandidos, que lhe cobiçavam o
rebanho. Tendo partido pelo Sul e pelas costas da Líbia, Héracles regressou
pelo Norte, seguindo as costas da Espanha, e depois as da Gália, passando pela
Itália e a Sicília, antes de penetrar na Hélade. Todo esse complicado itinerário
do herói estava, outrora, juncado de Santuários a ele consagrados. A todos
estavam vinculadas lendas e mitos locais, que mantinham, de certa forma, alguma
relação com o episódio do Rebanho de Gerião. Na Ligúria, foi atacado por um
bando de aborígenes belicosos. Após grande carnificina, o herói, percebendo que
não havia mais flechas em sua aljava e, como estivesse em grande perigo,
invocou a seu pai Zeus, que fez chover pedras do céu e com estas pôs em fuga os
inimigos. Ainda na Ligúria, dois filhos de Posídon, Ialébion e Dercino,
tentaram tomar-lhe os bois, mas foram mortos após cruenta disputa.
Continuando
seu caminho através da Etrúria, atingiu o Lácio, em cuja travessia, exatamente
no local onde se ergueria a futura Roma, foi obrigado a matar o monstruoso e
hediondo Caco, cujo mito é relatado pormenorizadamente por Evandro a Enéias (Eneida,
8,193-267). Após ser hospedado pelo rei Evandro, o herói prosseguiu viagem,
mas em Régio, na Calábria, fugiu-lhe um touro, que atravessou a nado o estreito
que separa a Itália da Sicília e foi, desse modo, que miticamente a Itália recebeu
seu nome, pois que, em latim, uitülus significa "vitelo, vitela,
bezerro". Héracles foi ao encalço do animal e, para reavê-lo, teve que
lutar e matar o rei Érix, deixando-lhe o reino entregue aos nativos, mas
profetizando que, um dia, um seu descendente se apoderaria do mesmo. Isto
realmente aconteceu, na época histórica, quando um "descendente" de
Héracles, o Lacedemônio Dorieu, fundou uma colônia, na Sicília, na região dos
Élimos.
Finalmente,
o herói, com todas as cabeças de gado, encaminhou-se para a Grécia; mas ao
tocar a margem helênica do Mar Jônio, o rebanho inteiro foi atacado por
moscardos, enviados por Hera. Enlouquecidos, os animais se dispersaram pelos
contrafortes das montanhas da Trácia. O herói os perseguiu e cercou por todos
os lados, mas só conseguiu reunir uma parte. O rio Estrímon, que, por todos os
meios, procurara dificultar essa penosa caçada ao rebanho disperso, foi
amaldiçoado e é por isso que seu leito está coberto de rochedos, tornando-o
impraticável à navegação.
Ao
termo dessa acidentada "peregrinação iniciática", o infatigável filho
de Alcmena entregou ao rei de Micenas o que sobrara do rebanho, que foi
sacrificado a Hera.
Angelo
Brelich observa argutamente que o roubo do rebanho e a disputa pelo mesmo têm
um sentido religioso e social no mito, grandemente significativo.
Tem
razão o autor, ao afirmar que os heróis raramente se dedicam ao furto de
tesouros, como Trofônio e os seus, mas sim ao de rebanhos, assunto muito
freqüente na mitologia heróica. Pausânias, 4,6,3sqq., viu bem a origem social
do problema, ponderando que a riqueza "naqueles tempos" consistia
antes do mais na posse de grandes armentos. Diga-se, aliás, de caminho, que em
latim pecunia, "dinheiro, riqueza", provém de pecu, "rebanho",
donde peculium, "pecúlio", pequena parte do rebanho doada ao
escravo, que guardava o armento; depois, pecúlio tomou um sentido mais lato de
propriedade particular; de pecu se derivou igualmente, em latim, peculatus,
concussão, "peculato", que seria, fugindo "em
parte" aos moldes jurídicos, uma como que rapinagem do suor do
rebanho-povo… Acrescente-se logo que se o latim grex, gregis possui
também o sentido de "rebanho, manada", egregius, "egrégio,
importante", é a "grei", a ovelha ou o carneiro de escol, tirado
do (e) rebanho (grex, gregis), como diz o gramático Sextus
Pompeius Festus, De Verborum Significatione, "Acerca do significado
das palavras", 21,20: unde et egregius dictus e grege lectus, "donde
também egrégio se diz do que foi escolhido do rebanho (e grege)".
Voltemos,
porém, à pilhagem e à disputa do rebanho, a grande fonte de riquezas, illo
tempore. Vimos como Héracles, após furtar os bois de Gerião, foi assediado
em todo o percurso de seu retorno à Hélade por outras personagens míticas, que
tentam arrebatar-lhe o rebanho, como Ialébion e Dercino (Apol. 2,109), o
monstruoso Caco e Érix. Grandes acontecimentos míticos, acrescenta Brelich87,
se relacionam com o rebanho, pouco importa que seja com o furto, a defesa ou
com a vingança pelo roubo do mesmo. Hesíodo, Trabalhos e Dias, 161-163,
falando dos heróis criados por Zeus, acrescenta que, na Guerra Tebana, muitos
deles "pereceram, lutando em defesa dos rebanhos de Édipo". O litígio
entre Anfitrião e Ptérela, segundo se viu, teve por causa o roubo do rebanho de
Eléctrion.
O
furto de rebanhos, no entanto, se prende igualmente a um motivo de caráter
religioso: o casamento. O cometimento central de Melampo em furtar os bois de
Fílaco e do filho deste último, Íficlo, era possibilitar que seu próprio irmão
Bias obtivesse a mão de Pero, filha de Neleu, em troca do rebanho furtado (Od.
XI, 281sqq.). A exigência de um rebanho como preço da mão de uma jovem
aparece igualmente no mito de Ifídamas.
É
preciso levar em conta, entretanto, que o rapto de mulheres e o furto de
rebanhos, fatos em si mesmos reprováveis e reprovados pela sensibilidade
moderna e certamente pelo classicismo grego, eram empreendimentos comuns e
normais naquela época de formação dos mitos e espelhavam o hábito real de uma
sociedade arcaica de guerreiros nômades. Desse modo, pode-se acreditar que
esses roubos e raptos se constituíam, ao contrário, em gestas extraordinárias e
dignas de um herói.
No que
diz respeito ao simbolismo dessa exaustiva tarefa do herói, Paul Diel julga que
a morte de Gerião, o gigante de três corpos, configura a vitória de Héracles
sobre o índice de três formas de perversidade: a vaidade banal, a devassidão e
a dominação despótica.
BUSCA
DO CÃO CÉRBERO
O
décimo primeiro Trabalho imposto por Euristeu ao primo foi a kat£basi$ (katábasis),
a "catábase" ao mundo dos mortos, para de lá trazer Cérbero, cão de
três cabeças, cauda de dragão, pescoço e dorso eriçados de serpentes, guardião
inexorável do reino de Hades e Perséfone. Impedia que lá penetrassem os vivos
e, quando isto acontecia, não lhes permitia a saída, a não ser com ordem
expressa de Plutão.
Jamais
Héracles, como Psiqué, teria podido realizar semelhante proeza, se não tivesse
contado, por ordem de Zeus, com o auxílio de Hermes e Atená, quer dizer, com o
concurso do que não erra o caminho e da que ilumina as trevas. Pessoalmente, o
herói se preparou, fazendo-se iniciar nos Mistérios de Elêusis, que, entre
outras coisas, ensinavam como se chegar com segurança à outra vida.
Segundo
a tradição mais seguida, o herói desceu pelo cabo Tênaro, na Lacônia, uma das
entradas clássicas que dava acesso direto ao mundo dos mortos.
Vendo-o
chegar ao Hades, os mortos fugiram espavoridos, permanecendo onde estavam
apenas Medusa e Meléagro. Contra a primeira o herói puxou a espada, mas Hermes
o advertiu de que se tratava apenas de um eídolon, de uma sombra vã;
contra o segundo, Héracles retesou seu arco, mas o desventurado Meléagro
contou-lhe de maneira tão comovente seus derradeiros momentos na terra, que o
filho de Alcmena se emocionou até as lágrimas: poupou-lhe o eídolon e
ainda prometeu que, no retorno, lhe desposaria a irmã Dejanira. O mito de
Meléagro, cuja vida dependia do tempo em que ficasse aceso um tição, e a luta
de Héracles com o rio Aquelôo pela mão de Dejanira, já foram relatados,
respectivamente, nos Vols. I, p. 260, e II, p. 174.
Mais
adiante, encontrou Pirítoo e Teseu, vivos, mas presos às cadeiras, em que se
haviam sentado no banquete fatal, assunto de que se tratará no capítulo
seguinte. Um pouco mais à frente deparou com Ascáfalo e resolveu libertá-lo.
Esse Ascáfalo, filho de uma ninfa do rio Estige e de Aqueronte, estava presente
no jardim do Hades, quando Perséfone, coagida por Hades, comeu um grão de romã,
o que lhe impedia a saída do mundo ctônio. Tendo-a denunciado, o filho de
Aqueronte foi castigado por Deméter, que o transformou em coruja, segundo se
viu no Cap. I, 4, Vol. II. Existe, porém, uma variante: para castigar a
indiscrição de Ascáfalo, a senhora de Elêusis colocara sobre ele um imenso
rochedo. Foi desse tormenta que o herói o libertou, embora a deusa tenha, em
contrapartida, substituído um castigo por outro, transformando-o em coruja.
Héracles
não foi só o maior dos heróis, mas igualmente o mais humano de todos eles. Mais
uma vez o encontramos penalizado com a sorte alheia: vendo que no Hades os
mortos eram apenas eídola, fantasmas abúlicos, resolveu "reanimá-los",
mesmo que fosse por alguns instantes. Para tanto, tendo que fazer libações
sangrentas aos mortos, imaginou sacrificar algumas reses do rebanho de Hades.
Como o pastor Menetes quisesse impedi-lo até mesmo de se aproximar dos animais,
o herói o apertou em seus braços possantes, quebrando-lhe várias costelas. Não
fora a pronta intervenção de Perséfone, Menetes iria aumentar, mais cedo, o
número dos abúlicos do Hades…
Finalmente
Héracles chegou diante de Plutão e, sem mais, pediu-lhe para levar Cérbero para
Micenas. Hades concordou, desde que o herói não usasse contra o monstro de suas
armas convencionais, mas o capturasse sem feri-lo, revestido apenas de sua
couraça e da pele do Leão de Neméia. Héracles agarrou-se com Cérbero e, quase
sufocado, o guardião do reino dos mortos perdeu as forças e aquietou-se.
Subindo com sua presa, passou por Trezena e dirigiu-se rapidamente para
Micenas. Vendo Cérbero, Euristeu refugiou-se em sua indefectível talha de
bronze.
Não
sabendo o que fazer com o monstro infernal, Héracles o levou de volta a Plutão.
Embora
já se tenha dito alguma coisa a respeito do simbolismo de Cérbero, no Vol.
I, p. 242-243, voltaremos ainda ao assunto no capítulo sobre Teseu
(Excelente post do ANT clicando aqui).
POMOS
DE OURO DO JARDIM DAS HESPÉRIDES
Quando
do hieròs gámos, do casamento sagrado de Zeus e Hera, esta recebeu de
Géia, como presente de núpcias, algumas maçãs de ouro. A esposa de Zeus as
achou tão belas, que as fez plantar em seu Jardim, no extremo Ocidente. E, como
as filhas de Atlas, que ali perto sustentava em seus ombros a abóbada celeste,
costumavam pilhar o Jardim, a deusa colocou os pomos e a árvore em que estavam
engastados, sob severa vigilância. Um dragão imortal, de cem cabeças, filho de
Tifão e Équidna, e as três ninfas do Poente, as Hespérides, Egle, Eritia
e Hesperaretusa, isto é, a "brilhante, a vermelha e a Aretusa do
poente", exatamente o que acontece com as três colorações do céu, quando o
sol vai desaparecendo no ocidente, guardavam, dia e noite, a árvore e seus
pomos de ouro. A derradeira tarefa do herói incansável consistia, exatamente,
em trazê-los a Euristeu. O primeiro cuidado de Alcides foi pôr-se a par do
caminho a seguir para chegar ao Jardim das Hespérides e, para tanto, tomou a
direção do Norte. Atravessando a Macedônia, foi desafiado por Cicno, filho de
Ares e Pelopia, uma das filhas de Pélias. Violento e sanguinário, assaltava
sobretudo os peregrinos, que se dirigiam ao Oráculo de Delfos. Após
assassiná-los, oferecia-lhes os despojos a seu pai Ares. Em rápido combate o
herói o matou, mas teve que defrontar-se com o próprio deus, que pretendia
vingar o filho. Atená desviou-lhe o dardo mortal, e o herói, então, o feriu na
coxa, obrigando Ares a fugir para o Olimpo.
Depois,
através da Ilíria, alcançou as margens do Erídano (rio Pó) e aí encontrou as
ninfas do rio, filhas de Zeus e Têmis, as quais viviam numa gruta. Interrogadas
por Héracles, elas lhe revelaram que somente Nereu era capaz de informar com
precisão como chegar ao Jardim das Hespérides. Nereu, para não indicar o
itinerário, transformou-se de todas as maneiras, mas o filho de Zeus o segurou
com tanta força, que o deus das metamorfoses acabou por revelar a localização
da Árvore das Maçãs de Ouro. Das ondas do mar, residência de Nereu, o
herói chegou à Líbia, onde lutou com o gigante Anteu, filho de Posídon e de
Géia. De uma força prodigiosa, obrigava a todos os que passavam pelo deserto
líbico a lutarem com ele e invariavelmente os vencia e matava. Héracles,
percebendo que seu competidor, quando estava prestes a ser vencido, apoiava
firmemente os pés na Terra, sua mãe, e dela recebia energias
redobradas, deteve-o no ar e o sufocou. Tomou por esposa, em seguida, a
mulher da vítima, Ifínoe, e deu-lhe um filho, chamado Palêmon.
Para
vingar seu amigo Anteu, os Pigmeus, que habitavam os confins da Líbia e não
tinham mais que um palmo de altura, tentaram matar Héracles, enquanto este
dormia. O herói, tendo acordado, pôs-se a rir. Pegou os "inimigos"
com uma só das mãos e os levou para Euristeu.
Atravessando
o Egito, Héracles quase foi sacrificado por Busíris, tido na mitologia grega
como o rei do Egito, mas seu nome não aparece em nenhuma das dinastias
faraônicas. Seria Busíris uma corruptela de Osíris?
Acontece
que a fome ameaçava o Egito, pelas más colheitas consecutivas e um adivinho de
Chipre, Frásio, aconselhou o rei a sacrificar anualmente um estrangeiro a Zeus,
para apaziguar-lhe a cólera e fazer que retornasse a prosperidade ao país. A
primeira vítima foi exatamente Frásio. Héracles, logo que lá chegou, o rei o
prendeu, enfaixou-o, o coroou de flores (como se fazia com as vítimas) e o
levou para o altar dos sacrifícios. O herói, todavia, desfez os laços, matou
Busíris e a todos os seus assistentes e sacerdotes. Do Egito passou à Ásia e na
travessia da Arábia viu-se forçado a lutar com Emátion, filho de Eos (Aurora) e
de Titono e, portanto, um irmão de Mêmnon. Emátion quis barrar-lhe o caminho
que levava ao Jardim das Hespérides, porque não desejava que Héracles colhesse
os Pomos de Ouro. Após matá-lo, o herói entregou o reino a Mêmnon e atravessou,
em seguida, a Líbia até o "Mar Exterior"; embarcou na Taça do Sol e
chegou à margem oposta, junto ao Cáucaso. Escalando-o, libertou Prometeu. Como sinal
de gratidão, o "deus filantropo" aconselhou-o a não colher ele
próprio as Maçãs, mas que o fizesse por intermédio de Atlas. Continuando
o roteiro, Héracles chegou ao extremo ocidente e, de imediato, procurou Atlas,
que segurava a abóbada celeste sobre os ombros. Héracles ofereceu-se para
sustentar o Céu, enquanto aquele fosse buscar As Maçãs. O gigante
concordou prazerosamente, mas, ao retornar, disse ao filho de Zeus que iria
pessoalmente levar os frutos preciosos a Euristeu. Héracles fingiu concordar e
pediu-lhe apenas que o substituísse por um momento, para que pudesse colocar
uma almofada sobre os ombros. Atlas nem sequer desconfiou. O herói, então,
tranqüilamente, pegou as Maçãs de Ouro e retornou a Micenas. De posse
das Maçãs, Euristeu ficou sem saber o que fazer com elas e as devolveu a
Héracles. Este as deu de presente a Atená, a deusa da Sabedoria. A deusa
repôs as Maçãs de Ouro no Jardim das Hespérides, porque a lei divina
proibia que esses frutos permanecessem em outro lugar, a não ser no Jardim
dos Deuses.
Fechara-se
o Ciclo. A gnôsis estava adquirida. E Héracles quase pronto para
morrer. Agora sim, já podia chamar-se Héracles, isto é, em etimologia
popular, Héra + Kléos, "a glória de Hera"...
Para
Chevalier e Gheerbrant, a maçã é realmente apreciada sob vários enfoques
diferentes, "mas todos eles acabam convergindo para um ponto comum, quer
se trate do Pomo da Discórdia, outorgado a Afrodite por Páris; dos Pomos
de Ouro do Jardim das Hespérides, frutos da imortalidade; quer do Pomo consumido
por Adão e Eva ou do Pomo do Cântico dos Cânticos, que traduz, ensina
Orígenes, a fecundidade do Verbo divino, seu sabor e seu odor. Trata-se, em
quaisquer circunstâncias, da maçã como símbolo ou meio de conhecimento,
mas que pode ser tanto o fruto da Árvore da Vida quanto o fruto da árvore da
Ciência do bem e do mal: conhecimento unitivo, que confere a imortalidade, ou
conhecimento distintivo, que provoca a queda".89
E.
Bertrand, citado pelos autores do Dictionnaire des Symboles90, opina que
"o simbolismo da maçã lhe advém do fato de a mesma conter em seu
interior, formado por alvéolos, que envolvem as sementes, uma estrela de cinco
pontas, um pentagrama, símbolo tradicional da sabedoria. Eis aí o motivo
pelo qual os iniciados fizeram do pomo o fruto do conhecimento e da
liberdade. E, portanto, comer a maçã significa para eles um abuso da
inteligência para conhecer o mal, um insulto à sensibilidade por desejá-lo e à
liberdade, por fazê-lo. O encasulamento do pentagrama, símbolo do
homem-espírito, no interior das carnes da maçã, configura, além do mais, a
involução do espírito na matéria carnal".
Alexandre
Magno, buscando a Água da Vida, na Índia, encontrou maçãs que
prolongavam a vida dos sacerdotes por quatrocentos anos. "Na mitologia
escandinava a maça é tida como o fruto regenerador e rejuvenescedor. Os
deuses comem maçãs e permanecem jovens até o ragna rök, vale dizer, até
o fecho do ciclo cósmico atual".
Para
Paul Diel, a maçã, por sua forma esférica, significaria, todos seus
desejos terrestres ou a complacência nesses desejos. O interdito de Javé teria
como objetivo admoestar o homem contra a predominância desses anseios, que o
arrastariam para uma vida animal, por uma espécie de regressão, contraponto da
vida espiritualizada, sinal, esta sim, de uma evolução progressiva. Semelhante
advertência divina faria com que o homem tomasse conhecimento dessas duas
direções: a escolha entre a via dos desejos materiais e a da espiritualidade. A
maçã seria, pois, o símbolo desse conhecimento e a opção de uma
necessidade, a necessidade de escolha.
A escolha de Héracles foi clara: optou
pela via do espírito, preparando-se, destarte, para escalar o último degrau,
que o levaria aos braços de Hebe, a Juventude perpétua. O herói, mesmo
assim, ainda teria que esperar um pouco. O último degrau é sempre o mais
difícil. Os sofrimentos em terra e no mar e, por fim, as chamas
no monte Eta, lhe dariam o direito de brindar com Zeus à imortalidade!”
Sim, eu colecionava, você não? |
Até próxima semana e a penúltima parte da
jornada do agora Hércules. O que vem a seguir são suas “missões secundárias”,
histórias poucos contadas, mas que vão tornar a figura de Hércules ainda mais
dúbia, complexa e menos heróica, além de fazer uma interligação ainda maior com
outros mitos. Caramba, essa deu mais trabalho ainda na formatação.
Força e honra.
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Até o próximo.
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