Vou começar aqui e agora uma série de
transcrições, não de qualquer bobagem, mas de um mito, magistralmente contado
pelo historiador Junito Brandão. Ele
escreveu o que eu acho de “trilogia suprema da Mitologia Grega”, e seus livros,
além de pouco conhecidos pela maioria, são bastante caros, cerca de 100 reais
cada. Resolvi transcrever aqui nesse primeiro post, a introdução que ele faz de
Hércules, cujo nome correto é Alcides, seu nome só seria esse de fato após a
conclusão dos trabalhos. Seria ofensivo e presunçoso se eu simplesmente ler
isso e tenta-se contar com as minhas palavras, seria até mesmo um demérito,
visto que o Sr. Junito fez uma pesquisa de uma vida para escrever esses três
livros, portanto em respeito a esse grande homem, vou compartilhar isso para
que mais pessoas possam ler. Vou dividir em umas quatro partes (formatadas para
uma melhor compreensão e leitura), são cerca de quarentas e poucas páginas,
resumindo ao máximo as várias versões, desse que é considerado o mais bravo e
forte dos semi-deuses.
Héracles
e os Doze Trabalhos 1 HÉRACLES,
em grego `HraklÍ$ (Heraklês), é interpretado em etimologia popular como palavra
composta de ”Hra (Héra), "Hera" e kle/o$ (kléos), "glória",
ou seja, o que fez a glória de Hera, saindo-se vitoriosamente nos doze
trabalhos gigantescos que a deusa lhe impôs. Pergunta, entretanto, Carnoy, se a etimologia citada não
resultaria de uma confusão entre o nome da deusa, que o perseguia, e o nome fo«
(êra), sem aspiração, e que significa serviço, uma vez que o herói realmente
pode ser chamado "aquele que gloriosamente serviu por suas gestas
célebres". Quanto ao nome latino do deus, Hércules, este provém do grego
Heraklês, possivelmente com um intermediário etrusco hercle. Seja como for,
trata-se de mais um nome mítico sem uma etimologia satisfatória. Muito embora
seja Zeus, no mito, e não Anfitrião, o pai de Héracles, este vem a ser bisneto de Perseu pelo lado
materno, pois Alcmena, sua mãe, é filha de Eléctrion e neta de Perseu. O quadro
a seguir torna mais clara a genealogia do maior dos heróis gregos.
Perseu querendo a cabeça de quem fez o remake de Fúria de Titãs... |
Já tendo sido mencionados todos os filhos de
Perseu e Andrômeda no fim do capítulo anterior, vamos nos preocupar apenas com
Alceu e Eléctrion. Enquanto neto de Alceu, o filho de Alcmena é chamado
igualmente 'AtoceíSrjç (Alkéides), Alcides, nome proveniente de * M (alké),
"força em ação, vigor". Em tese, até a realização completa dos Doze
Trabalhos, o herói deveria ser chamado tão-somente de Alcides, pois só se torna a "glória de Hera", Héracles,
após o término de todas as provas iniciáticas impostas pela deusa. É assim,
aliás, que lhe chama Píndaro,
Olímpicas, 6,68: "o rebento ilustre da raça de Alceu". É
extremamente difícil tentar expor, já não diria em ordem racional, mas até
mesmo com certa ordem, o vasto mitologema de Héracles, uma vez que os mitos, que
lhe compõem a figura, evoluíram ininterruptamente, desde a época pré-helênica até o fim da antiguidade greco-latina. Variantes, adições e
interpolações várias de épocas diversas, algumas até mesmo de cunho político, enriqueceram de tal
modo o mitologema, que é totalmente impraticável separar-lhe os mitemas. O
único método válido, a nosso ver, para que se tenha uma visão de conjunto desse
extenso conglomerado, é dividir a
estória de Héracles em ciclos, fazendo-os preceder dos mitos concernentes a
seu nascimento, infância e educação. Vamos, assim, tentar estabelecer uma
divisão mais ou menos didática nesse longo mitologema, a fim de que se possa
ter uma idéia das partes e, quanto possível, do todo.
Nosso esquema "artificial"
funcionará, pois, da seguinte maneira:
1 — nascimento, infância e educação de
Héracles;
2 — o ciclo dos Doze Trabalhos;
3 — aventuras secundárias, praticadas no curso
dos Doze Trabalhos;
4 — gestas independentes do ciclo anterior; e 5
— ciclo da morte e da apoteose do herói.
O Hino homérico a Héracles, 1-8, em apenas
oito versos, nos traça o destino completo do herói incomparável:
É a
Héracles, filho de Zeus, que vou cantar,
ele
que ê de longe o maior dentre os que habitam a terra.
Aquele
a quem Alcmena, na Tebas de belos coros, deu a luz,
após
unir-se ao Crônida de sombrias nuvens.
Errou
e sofreu, primeiro, sobre a terra e no mar imensos; em seguida triunfou, graças
à sua bravura,
e,
sozinho, executou tarefas audaciosas e inimitáveis. Agora, habita feliz a bela
mansão do Olimpo nevoso
e
tem por esposa a Hebe de lindos tornozelos.
Anfitrião, filho de Alceu, casara-se com sua
prima Alcmena, I ilha de Eléctrion, rei de Micenas, mas tendo involuntariamente
causado a morte de seu sogro e tio, foi banido por seu tio Estênelo, rei
suserano de Argos, e de quem dependia o reino de Micenas. Expulso, pois, de
Micenas, Anfitrião, em companhia da esposa, refugiou-se em Tebas, onde foi
purificado pelo rei Creonte. Como Alcmena se recusasse a consumar o matrimônio,
enquanto o marido não lhe vingasse os irmãos, mortos pelos filhos de Ptérela77,
Anfitrião, obtida a aliança dos Tebanos e com contingentes provindos de várias
regiões da Grécia, invadiu a ilha de
Tafos, onde reinava.
Ptérela era um dos muitos descendentes de
Perseu. Durante o reinado de Eléctrion em Micenas, os filhos de Ptérela foram
reclamar aquele reino, ao qual diziam ter direito, uma vez qui ali reinara um seu
bisavô, Mestor, irmão de Eléctrion. Este repeliu indignado as pretensões dos
príncipes, que, como vingança, lhe roubaram os rebanhos. Desafiados pelos
filhos de Eléctrion para um combate, houve grande
morticínio, tendo escapado apenas dois contendores, um de cada família.
Foi, por amor de Alcmena, que Anfitrião empreendeu a guerra contra Tafos.
Havia, no entanto, um oráculo segundo o qual, em vida do rei Ptérela, a ilha
jamais poderia ser tomada, É que a vida do rei estava ligada a um fio de cabelo
de ouro que Posídon implantara na cabeça do mesmo. Aconteceu, no entanto, que
Cometo, filha de Ptérela, se apaixonara por Anfitrião e, enquanto o pai dormia,
arrancou o fio de cabelo mágico, provocando-lhe assim a morte e a ruína de
Tafos.
O modo como mostram o Hades em GOW 3 é de uma fidelidade quase impecável. |
Ptérela. Com a traição de Cometo, a vitória
de Anfitrião foi esmagadora. Carregado de despojos, o filho de Alceu se
aprestou para regressar a Tebas, com o objetivo de fazer Alcmena sua mulher.
Pois bem, foi durante a ausência de Anfitrião que Zeus, desejando dar ao mundo um
herói como jamais houvera outro e que libertasse os homens de tantos monstros,
escolheu a mais bela das habitantes de Tebas para ser mãe de criatura tão
privilegiada. Sabedor, porém, da fidelidade absoluta da princesa micênica, travestiu-se de Anfitrião, trazendo-lhe
inclusive de presente a taça de ouro por onde bebia o rei Ptérela e, para que
nenhuma desconfiança pudesse ainda, porventura, existir no espírito da
"esposa", narrou-lhe longamente os incidentes da campanha. Foram três noites de um amor ardente,
porque, durante três dias, Apolo por
ordem do pai dos deuses e dos homens, deixou de percorrer o céu com seu
carro de chamas. Ao regressar, logo após a partida de Zeus, Anfitrião ficou
muito surpreso com a acolhida tranquila e serena da esposa e ela também muito
se admirou de que o marido houvesse esquecido tão depressa a grande batalha de
amor travada até a noite anterior em Tebas… Um duelo que fora mais longo que a
batalha na ilha de Tafos! Mais espantado e, dessa feita, confuso e nervoso
ficou o general tebano, quando, ao narrar-lhe os episódios da luta contra
Ptérela, verificou que a esposa os conhecia tão bem ou melhor que ele.
Consultado, o adivinho Tirésias revelou
a ambos o glorioso adultério físico de Alcmena e o astucioso estratagema de
Zeus. Afinal, a primeira noite de núpcias compete ao deus e é, por isso, que o
primogênito nunca pertence aos pais, mas a seu Godfather… Mas Anfitrião,
que esperara tanto tempo por sua lua de mel, se esquecera de tudo isto e, louco
de raiva e ciúmes, resolveu castigar Alcmena, queimando-a viva numa pira. Zeus, todavia, não o permitiu e fez
descer do céu uma chuva repentina e abundante, que, de imediato, extinguiu as
chamas da fogueira de Anfitrião. Diante de tão grande prodígio, o general
desistiu de seu intento e acendeu outra
fogueira, mas de amor, numa longa noite de ternura com a esposa. Com tantas
noites de amor, Alcmena concebeu dois filhos: um de Zeus, Héracles; outro de Anfitrião, Íficles.
Acontece que Zeus, imprudentemente, deixara
escapar que seu filho nascituro da linhagem dos persidas reinaria em Argos. De
imediato, a ira e o ciúme de Hera, que jamais deixou em paz as amantes e os
filhos adulterinos de seu esposo Zeus, começaram a manifestar-se. Ordenou a Ilítia,
deusa dos partos, (sobre quem já se falou no Vol. II, p. 58) e que, diga-se
mais uma vez, é uma hipóstase da própria rainha dos deuses, que retardasse o
mais possível o nascimento de Héracles e apressasse o de Euristeu, primo de
Alcides, porquanto era filho de Estênelo. Nascendo primeiro, o primo do filho
de Alcmena seria automaticamente o herdeiro de Micenas. Foi assim que Euristeu veio ao mundo com sete meses e
Héracles com dez! Este acontecimento é narrado minuciosamente na Ilíada, XIX, 97-134. Fazia-se
necessário, todavia, iniciar urgentemente a imortalidade do herói. Zeus
arquitetou um estratagema, cuja execução, como sempre, ficou aos cuidados de
Hermes: era preciso fazer o herói sugar, mesmo que fosse por instantes, o seio
divino de Hera. O famoso Trismegisto conseguiu mais uma vez realizar uma
façanha impossível: quando a deusa adormeceu, Hermes colocou o menino sobre os
seios divinos da imortal esposa de Zeus. Hera despertou sobressaltada e repeliu
a Héracles com um gesto tão brusco, que o leite divino espirrou no céu e formou
a Via Láctea!
Esse foi o primeiro chocalho de Alcides. |
Existe uma variante que narra o episódio de
maneira diversa. Temerosa da "ira sempre lembrada da cruel Juno",
como diria muito mais tarde Vergílio, Eneida, 1,4, com respeito ao
ressentimento da deusa contra Enéias, Alcmena mandou expor o menino nos arredores
de Argos, num local que, depois, se chamou "Planície de Héracles".
Por ali passavam Hera e Atená e a deusa da inteligência, vendo o exposto,
admirou-lhe a beleza e o vigor. Pegou a criança e entregou-a a Hera,
solicitando-lhe desse o seio ao faminto. Héracles sugou o leite divino com
tanta força, que feriu a deusa. Esta o lançou com violência para longe de si.
Atená o recolheu e levou de volta a Alcmena, garantindo-lhe que podia criar o
filho sem temor algum. De qualquer forma, o vírus da imortalidade se inoculara
no filho de Zeus e Alcmena. Mas o ódio de Hera sempre teve pernas compridas.
Quando o herói contava apenas oito meses, a deusa enviou contra ele duas
gigantescas serpentes. Íficles, apavorado, começou a gritar, mas Héracles,
tranqüilamente, se levantou do berço em que dormia, agarrou as duas víboras,
uma em cada mão, e as matou por estrangulamento. Píndaro, nas Neméias, 1,33-63, disserta poética e longamente
sobre a primeira grande gesta de Héracles. Anfitrião, que acorrera de espada em
punho, ao ver o prodígio, acreditou, finalmente, na origem divina do
"filho". E o velho Tirésias, mais uma vez, explicou o destino, que
aguardava o herói. A educação de Héracles, projeção da que recebiam jovens
gregos da época clássica, começou em casa. Seu primeiro grande mestre foi o
general Anfitrião, que o adestrou na difícil arte de conduzir bigas. Lino foi
seu primeiro professor de música e de letras, mas enquanto seu irmão e
condiscípulo Íficles se comportava com atenção e docilidade, o herói já desde muito
cedo dava mostra de sua indisciplina e
descontrole.
Num dia, chamado à atenção pelo grande
músico, Héracles, num assomo de raiva, pegou um tamborete, outros dizem que uma
lira, e deu-lhe uma pancada tão violenta, que o mestre foi acordar no Hades. Acusado de homicídio, o jovem
defendeu-se, citando um conceito do implacável juiz dos mortos, Radamanto, segundo o qual tinha-se o
direito de matar o adversário, em caso de legítima defesa. Apesar da quando
muito legítima defesa cerebrinamente putativa, Héracles foi absolvido. Em
seguida, vieram outros preceptores: Eumolpo prosseguiu com o ensino da música;
Êurito, rei de Ecália, que bem mais tarde terá um problema muito sério com o
herói, ensinou-lhe o manejo do arco, arte em que teve igualmente por instrutor
ao cita Têntaro e, por fim, Castor o exercitou no uso das demais armas.
Héracles, porém, sempre se portou como um indisciplinado e temperamental incorrigível, a ponto de, temendo pela vida dos
mestres, Anfitrião o mandou para o campo, com a missão de cuidar do rebanho.
Enquanto isso, o herói crescia desproporcionadamente. Aos dezoito anos, sua altura chegava a três metros! (Nota
minha: Fiel a esse fato até hoje só vi o terceiro jogo de God of War) E foi
exatamente aos dezoitos anos que Héracles realizou sua primeira grande façanha,
a caça e morte do leão do monte Citerão.
Este animal, de porte fora do comum e de tanta ferocidade, estava causando
grandes estragos nos rebanhos de Anfitrião e do rei Téspio, cujas terras eram
vizinhas das de Tebas. Como nenhum caçador se atrevesse a enfrentar o monstro,
Héracles se dispôs a fazê-lo, transferindo-se, temporariamente, para o reino de
Téspio. A caçada ao leão durou cinqüenta
dias, porque, quando o Sol se punha, o caçador retornava, para dormir no
palácio. Exatamente no qüinquagésimo dia, o herói conseguiu sua primeira grande
vitória. Acontece, porém, que Téspio, pai de cinqüenta filhas, e desejando que
cada uma tivesse um filho de Héracles, entregava-lhe uma por noite e foi assim
que, durante cinqüenta dias, o herói fecundou as cinqüenta jovens, de que
nasceram as tespíades. A respeito da divergência do tempo que durou essa proeza
sexual do filho de Alcmena já se falou na Introdução, Capítulo I, onde se
mostrou, igualmente, que a potência
sexual de Héracles não teve competidor, ao menos no mito. É possível que
nos civilizados tempos modernos a Surmâle de Jarry lhe possa servir de
parâmetro...
Ao retornar do reino de Téspio, Héracles
encontrou nas vizinhanças de Tebas os delegados do rei de Orcômeno, Ergino, que
vinham cobrar o tributo anual de cem
bois, que Tebas pagava a Orcômeno, como indenização de guerra. Após
ultrajá-los, o herói cortou-lhes as orelhas e o nariz e, pendurando-os ao
pescoço de cada um, os enviou de volta, dizendo-lhes ser este o pagamento do
tributo. Indignado, Ergino, com um grande exército, marchou contra Tebas. Héracles desviou o curso de um rio e
afogou na planície a cavalaria inimiga. Perseguiu, em seguida, a Ergino e o
matou a flechadas. Antes de retirar-se com os soldados tebanos, impôs aos
mínios de Orcômeno o dobro do tributo que lhes era pago por Tebas. Foi nesta guerra que morreu Anfitrião,
lutando bravamente ao lado do filho. O rei Creonte, grato por tudo quanto o
filho de Alcmena fizera por Tebas, deu-lhe em casamento sua filha primogênita (Nota:
Essa é a mais mencionada como esposa de Hércules nas histórias, inclusive nas
animações da Disney) ,
enquanto a caçula se casava com Íficles, tendo este, para tanto, repudiado sua
primeira esposa Automedusa, que lhe dera um filho, Iolau. De Héracles e Mégara
nasceram oito filhos, segundo Píndaro; três, conforme Apolodoro; sete ou cinco,
consoante outras versões. Não importa o número. Talvez o que faça pensar é a reflexão
de Apolodoro de que Héracles somente foi
pai de filhos homens, como se de um macho quiçá só pudessem nascer machos…
(Apol. 2,7,8).
Hera, porém, preparou tranqüilamente a grande
vingança. Como protetora dos amantes legítimos, não poderia perdoar ao marido
seu derradeiro adultério, ao menos no mito, sobretudo quando Zeus tentou dar a
essa união ilegítima com Alcmena o signo da legitimidade (Diod. 4,9,3; Apol.
2,4,8), fazendo o menino sugar o leite imortal da esposa. Foi assim que a deusa
lançou contra Héracles a terrível LÚssa (Lýssa), a raiva, o furor, que, de mãos dadas com a °noia (ánoia), a
demência, enlouqueceu por completo o herói. Num acesso de insânia, ele acabou matando
a flechadas ou lançando ao fogo os próprios filhos. Terminado o morticínio dos
seus, investiu contra os de Íficles, massacrando a dois. Sobraram dessa loucura
apenas Mégara e Iolau, salvos pela ação rápida de Íficles. Recuperada a razão,
o herói, após repudiar Mégara e entregá-la a seu sobrinho Iolau, dirigiu-se ao
Oráculo de Delfos e pediu a Apolo que lhe indicasse os meios de purificar-se
desse ¢koÚsio$ fÒno$ (akúsios phónos), desse "morticínio
involuntário", mas, mesmo assim considerado "crime hediondo", na
mentalidade grega. A Pítia ordenou-lhe colocar-se ao serviço de seu primo Euristeu durante doze anos, ao que
Apolo e Atená teriam acrescentado que, como prêmio de tamanha punição, o herói
obteria a imortalidade. Existem variantes acerca dessa submissão de Héracles a
Euristeu, que, aliás, no mito é universalmente tido e havido como um poltrão, um covarde, um deformado física e
moralmente. Incapaz, até mesmo, de encarar o herói frente a frente,
mandava-lhe ordens através do arauto Copreu, filho de Pélops, refugiado em
Micenas. Proibiu, por medo, que Héracles penetrasse no recinto da cidade e, por
precaução, mandou fabricar um enorme jarro de bronze como supremo refúgio. E
não foi preciso que o herói o atacasse, para que Euristeu "usasse o
vaso". Mais de uma vez, como se verá, o rei de Micenas se serviu do
esconderijo, só à vista das presas e monstros que lhe eram trazidos pelo filho
de Alcmena. Numa palavra: Euristeu,
incapaz de realizar mesmo o possível, impôs ao herói o impossível, vale dizer,
a execução dos célebres Doze Trabalhos.
Dizíamos, porém, que existem variantes, que
explicam de outra maneira a submissão de Héracles ao rei de Micenas. Uma delas
relata que Héracles, desejando retornar a Argos, dirigiu-se ao primo e este
concordou, mas desde que aquele libertasse primeiro o Peloponeso e o mundo de
determinados monstros. Uma outra, retomada pelo poeta da época alexandrina,
Diotimo, apresenta Héracles como amante de Euristeu (???!!) . Teria sido por mera complacência amorosa
que o herói se submetera aos caprichos do amado, o que parece, aliás, uma
ressonância tardia do discurso de Fedro no Banquete
de Platão (tinha que ser daí mesmo...) , 179. As variantes apontadas e outras de
que não vale a pena falar, bem como a "condição de imortalidade",
sugerida ou imposta por Apolo e Atená, provêm simplesmente da reflexão do
pensamento grego sobre o mito: a necessidade de justificar tantas provações por
parte de um herói idealizado como o justo por excelência. Para as religiões de
mistérios, na Hélade, os sofrimentos de Héracles configuram as provas por que
tem que passar a psiqué, que se libera paulatina, mas progressivamente dos
liames do cárcere do corpo. 96 3 Os Doze Trabalhos são, pois, as provas a que o
rei de Argos, o covarde Euristeu, submeteu seu primo Héracles.
Num plano simbólico, as doze provas
configuram um vasto labirinto, cujos meandros, mergulhados nas trevas, o herói
terá que percorrer até chegar à luz, onde, despindo a mortalidade, se revestirá
do homem novo, recoberto com a indumentária da imortalidade. Quanto ao número
DOZE, trata-se de algo muito significativo. Para Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant7 "é o número das divisões espaço-temporais, o produto dos
quatro pontos cardeais pelos três níveis cósmicos. Divide o céu, visualizado
como uma cúpula, em doze setores, os doze signos do zodíaco, mencionados desde
a mais alta antigüidade (...). A combinação de dois números 12x5 origina os ciclos de 60 anos, quando
se culminam os ciclos solar e lunar. Doze simboliza, pois, o universo em
seu desenvolvimento cíclico espaço-temporal. Configura igualmente o universo em
sua complexidade interna. O duodenário, que caracteriza o ano e o zodíaco,
representa a multiplicação dos quatro elementos, água, ar, terra e fogo, pelos
três princípios alquímicos, enxofre, sal e mercúrio, ou ainda os três estados
de cada elemento em suas fases sucessivas: evolução, culminação e involução".
Na simbólica cristã, o doze tem um significado todo particular. A combinação do
quatro do mundo espacial e do três do tempo sagrado, dimensionando a
criação-recriação, produz o número doze, que é o do mundo concluído. Doze é
outrossim o número da Jerusalém celeste: 12 portas, 12 apóstolos, 12
cadeiras...; é o número do ciclo litúrgico do ano de doze meses e de sua
expressão cósmica, que é o Zodíaco. Para os escritores sagrados doze é o número
da eleição, o número do povo de Deus, da Igreja. Jacó gerou doze filhos,
ancestrais epônimos das doze tribos de Israel (Gn 35,23sqq.). A árvore da vida
estava carregada com doze frutos; os sacerdotes tinham doze jóias. Doze eram os
Apóstolos. A Jerusalém celestial do Apocalipse 21,12 estava assinalada com o
número doze: "E tinha um muro grande e alto com doze portas; e nas portas
doze anjos, e uns nomes escritos, que são os nomes das doze tribos dos filhos
de Israel". Logo a seguir, em 21,14, diz o Apocalipse: "E o muro da
cidade 78. Op. cit., p. 365sq. 97 tinha doze fundamentos e neles os doze nomes
dos doze Apóstolos do Cordeiro". E o doze e seus múltiplos continuam por
todo o Capítulo 21. Os fiéis dos fins dos tempos serão 144 000, 12 000 de cada
uma das doze tribos de Israel (Ap 7,4-8; 14,1). Também em torno da Távola
Redonda do rei Artur sentavam-se doze cavaleiros. Doze é, por conseguinte, o
número de uma realização integral, de um fecho completo, de um uróboro. Desse
modo, no Tarô, a carta do Enforcado (XII) marca o fim de um ciclo involutivo,
seguido pelo da morte (XIII), que deve ser tomado no sentido de renascimento.
Mostraremos esse décimo terceiro trabalho de Héracles… Voltemos às fadigas do
herói-deus dos Helenos. Os mitógrafos da época helenística montaram um catálogo
dos Doze Trabalhos em duas séries de seis. Os seis primeiros tiveram por palco
o Peloponeso e os seis outros se realizaram em partes diversas do mundo então
conhecido, de Creta ao Hades. Advirta-se, porém, que há muitas variantes, não
apenas em relação à ordem dos trabalhos, mas igualmente no que tange ao número
dos mesmos. Apolodoro, por exemplo, só admitia dez. Exceto a clava, que o
próprio herói cortou e preparou de um tronco de oliveira selvagem, todas as
suas demais armas foram presentes divinos: Hermes lhe deu a espada; Apolo, o
arco e as flechas; Hefesto, uma couraça de bronze; Atená um peplo e Posídon
ofereceu-lhe os cavalos.
Pronto. Espero que tenham achado
interessante, o próximo post será dos doze trabalhos. Apesar de ainda ser resumido,
é sempre bom ver várias fontes, cada qual acrescenta mais um pouco. Eu
recomendaria esse vídeo aqui como um “dever de casa” da “aula” de hoje. Para
não ficar muita informação de uma vez só, e melhorar a qualidade, esse post
será lançado semanalmente. Até a próxima Terça.
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