A Piada Mortal é uma história interessante com uma história interessante por trás dela. Talvez você conheça uma parte dela, talvez a conheça por inteiro. Pelo sim pelo não, eis aqui a história da história. A revista A Saga do Monstro do Pântano estava para ser cancelada, então sem muito o que perder a DC convidou para assumi-la um notável prodígio do retraído mercado quadrinístico britânico, o senhor Alan Moore. Alan após certificar-se que não se tratava de um trote aceitou a proposta e revolucionou o título, ganhou prêmios, arrancou elogios rasgados da crítica especializada e se tornou um grande nome dentro da indústria. Daí seguiram-se Watchmen e V for Vendetta (V for Vendetta também é um caso interessante, começou a ser feito anos antes, ainda no velho mundo. Não vou detalhar aqui porque acaba fugindo demais do tópico, fica para uma próxima).
Havendo Alan se tornado o rei da cocada preta foi lhe perguntado o que ele gostaria de fazer a seguir. Trabalhar com Brian Bolland foi a resposta. Cara, você já viu uma ilustração de Brian Bolland? Eu olho e babo, o sujeito é simplesmente um mito dentro desse meio. A DC ofereceu um anual do Batman para a dupla e Alan perguntou à Bolland como ele gostaria que fosse a história. Bolland respondeu que estava interessado no Coringa e Alan decidiu criar uma história que o pusesse em destaque, essa sendo a Piada Mortal. Todos os prazos possíveis foram estourados e o anual não saiu (não assinado pela dupla, pelo menos), enquanto a história seguiu em produção. Tempos depois finalmente estava pronta, com um final de arrepiar os cabelos da careca de Lex Luthor. Na trama um Coringa particularmente sádico aleija e abusa sexualmente da Batgirl, exerce tortura psicológica sobre o comissário Gordon tentando levá-lo à insanidade, segue-se a intervenção do morcego, e filosofia de que ambos compartilham neuroses semelhantes e por fim Batman matava o Coringa no final. Claro que a DC não deixou isso passar, não como Alan concebeu, pelo menos. Os desenhos de Brian Bolland foram editados de forma a mudar o enfoque e a violência sexual, transparente no primeiro rascunho, ficou apenas sugerida no quadro finalizado. Mas o estupro da Batgirl talvez até passasse. O que não passava era o Coringa sendo assassinado pelo Batman. Tudo bem, dentro do contexto da trama fazia todo sentido, na forma como o Batman pensa, "Mais uma pessoa que eu matei por ter deixado o Coringa viver". Para o Batman faz todo o sentido matar o Coringa. Para a DC Comics e para a Warner é que não faz nenhum sentido deixar que o Coringa morra. Quem mata uma galinha que põe ovos de ouro? Aí inventaram um final alternativo em cima da hora, mas Alan deu um jeito de o seu final original continuar lá, reza a lenda. Aquela piada no final, inventada às pressas dias antes de o gibi ir para a gráfica. Reza a lenda que a ideia de Alan era a seguinte, Batman finge que embarcou na loucura do Coringa, para desarmá-lo. E aí vem aquele quadro com o morcego apoiando a mão no peito do palhaço. Ali Batman está matando ele, enfiando algo no coração, mais provável um bumerangue, pode ser uma faca também, talvez os próprios dedos. O quadro seguinte era pra ser o sangue jorrando no meio da chuva, e Bolland duplicou essa imagem logo no comecinho, pra despistar, aquela não é a imagem do início, a história começa mostrando o final primeiro e a seguir recua no tempo, para você entender como aquilo chegou lá. Tudo disfarçadinho nessa versão editada que você tem na sua prateleira.
Agora imagina onde eu quero chegar. Você é Alan Moore, escrevendo o Batman, na sua fase mais produtiva e elogiada, e você ainda não tem a liberdade criativa de fazer o que você quer. Infelizmente é assim que é. Pelo bem ou pelo mal é como a indústria funciona. Personagens como Superman, Batman ou Mulher-Maravilha são tão míticos, tão absurdamente icônicos que qualquer tentativa de se fazer algo novo com eles é imediatamente rechaçada. Por coisas assim que eu parei de ler DC. De todos os heróis indiscutivelmente é o Superman quem mais sofre com o fato de as coisas serem assim. Veja, o muitas vezes premiado Mark Waid nunca escondeu seu desejo de trabalhar com o escoteiro azul, e nunca lhe foi dada a chance (descontando uma mini com muita interferência editorial e que foi válida para efeitos de cronologia por um ano, e depois varrida para debaixo do tapete). O mesmo podemos dizer de Alan Moore. E de Mark Millar. E de tantos, ah, tantos outros! Nunca faltaram roteiristas afirmando estar interessados em trabalhar com o Superman, e a DC sempre pôs todos para correr ao ameaçarem tentar sugerir alguma coisa nova. A fase de Grant Morrison nos X-Men só existiu porque ele saiu brigado da DC após a reformulação do Superman proposta por ele e pelo então seu amigo Mark Millar haver sido terminantemente vetada. Aí Morrison foi pra Marvel e usou as ideias no título Marvel Boy. E Alan Moore na Image fez o Supremo, criado para fazer aquilo que nunca teria permissão com o Superman. E não faltou quem achou que ficou melhor. Paul Jenkins criou o Sentinela, mas foi Bendis quem soube usar de verdade o personagem. Straczynski fez o Poder Supremo, humilhando tudo o mais que estava sendo feito com o kriptoniano na época. Jonathan Hickman mês após mês me mostra com seu Hipérion tudo o que o Superman devia ser e não é. Ora, eu mesmo uma ou duas vezes brinquei de escrever algo com o personagem, sempre longe da rédea curta castradora editorial da DC. Ah sim, a DC fez Grandes Astros Superman, e Superman entre a Foice e o Martelo e Injustiça Deuses Entre Nós. Sempre fora da cronologia. O Superman só voa se for assim, uma realidade alternativa que não afete o status quo ou um genérico em outra editora. Mark Millar que nunca fez segredo do seu sonho de assumir a série mensal do personagem aceitou isso e criou seu próprio Superman, o Superior, em sete edições ao lado de Leinil Yu pelo selo MillarWord.
A edição nacional tem capa dura e um super acabamento, vai ficar muito bem na sua estante, garanto. Não é baratinha, mas também não chega a ser caríssima, na média, embora sem dúvida salgada se você parar pra computar a realidade econômica do nosso país. Mas é um livro só, compre, vale cada centavinho que você gastar nele. A arte de Leinil Yu está bem legal, na verdade mais que isso, eu que tinha o sujeito como "fraquinho" me espantei com o que ele conseguiu realizar aqui, o final está acima de qualquer outra coisa que eu já o tenha visto fazer, embora bem ajudado pelo excelente acabamento gráfico da edição e, claro, pela história. Mark tanto esperou pra escrever o Superman e aqui lambe os beiços com a sua própria versão, devidamente amalgamada ao Shazam, mas as características do kriptoniano são as que prevalecem, desde a Lois Lane clássica, ao Luthor de armadura, o mascote com poderes de alterar a realidade que nos remete a um certo conhecido da quinta dimensão e aquele Aniquilador que vai arrancar a palavra "Brainiac" da sua boca. O Superman mágico de Alan Moore é amarrado ao clássico drama humano das histórias de Mark, e o casamento sai bem legal, talvez nas primeiras páginas excessivamente lento mas devidamente compensado pelas explosões no final que não são nenhuma novidade para quem acompanha o trabalho do cara. O livro como um todo ainda é uma bela indicação para a DC/Warner de como fazer um filme bom de verdade com o Superman, embora quanto a isso, para ser franco eu já perdi toda a esperança. Mas é legal ver Mark na "fase dois". Veja, escritores ou artistas em geral têm uma tendência a primeiro, no momento que acabam de chegar, querer mostrar algo de sua visão original para todo mundo, e num segundo momento depois de algo já estabelecido eles se voltam para brincar com os conceitos anteriormente convencionados. Alan Moore teve a sua fase de fazer O Monstro do Pântano, V for Vendetta e Do Inferno, e depois teve a segunda fase de coisas como Supremo, Tom Strong e Top Ten. Millar teve a sua fase de The Authority, Os Supremos e Guerra Civil. E agora está na fase dois, de coisas como Nêmesis e Superior. Em seu posfácio autor comenta algo de tentar ir numa linha diferente do que seria esperado dele. Nesse ponto falhou, uma história do Superman sempre foi tão esperado dele quanto foi de Byrne, Moore ou Morrison. Comenta de tentar criar o clima de um velho filme de Spielberg. Nesse ponto acertou, me faz lembrar de como eu via o Superman aos dez ou doze anos de idade. Comenta que foi uma conversa com Stan Lee que o convenceu a tentar criar algo novo para ser acrescentado ao universo dos quadrinhos. Nesse ponto falhou, sua admiração e amor genuínos pelo Superman é mais do que compreensível pelo menos para mim, mas do ponto visto criativo esse tem que ser considerado seu trabalho mais fraco, o drama é bom e convincente, mas do ponto da vista da fantasia ele não criou nada de novo, até o origem dos poderes é a mesma de um outro trabalho autoral seu já mencionado aqui. Tudo bem, dá pra entender o medo de mexer e estragar uma fantasia de infância, mas chega a ser irônico em alguém que já foi considerado o maior expoente da criatividade nos dar duzentas páginas de um trabalho autoral sem uma única ideia original. Mas isso tudo olhando de um ponto de vista mais crítico, nada que precise preocupar o leitor comum ou que prejudique a leitura desse livro. Ah não, a leitura é mais do que agradável, é um deleite, chega a ser onírica. Por nos lembrar tudo o que o Superman PODERIA ser quase levou um dez, passou perto.
nota 9,4.
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