E quando Os Beatles começaram a tocar, você estava lá? Provavelmente não estava, mas viu sobre isso depois, viu os efeitos. E quando os irmãos Lumiére inauguraram o cinema? Só ouvimos contar as histórias da transmissão do filme com a imagem do trem, e o povo correndo com medo, achando que era um trem de verdade. Eu imagino isso às vezes. Estar na Inglaterra em 1590 e assistir a execução de uma peça shakespeareana ao lado do próprio William Shaekespeare. Ou voltar alguns séculos antes ainda, e testemunhar a apresentação das primeiras tragédias gregas e a invenção do teatro. Ver Van Gogh pintando as telas e tentando em vão vendê-las. Se sentar com Leonardo Da Vinci e discutir geometria e aquele seu protótipo de máquina voadora. Eu imagino coisas assim, às vezes. É raro você estar lá, ver o exato momento da virada, testemunhar o surgimento daquele cara que depois dele o mundo não foi mais o mesmo. Ver a nona arte antes de Alan Moore, durante Alan Moore e depois de Alan Moore. Como esse tipo de coisa é rara e especial. Já imaginou estar lá e ver Tolkien colocar nas prateleiras a primeira impressão do seu O Hobbit?
Não podemos voltar no tempo e testemunhar o surgimento de Tolkien. Mas podemos aqui e agora testemunhar a ascensão de George R. R. Martin. Se você tem noção da importância de Van Gogh na pintura, de Shaekespeare no teatro ou Lumiére no cinema, deixe-me te dizer que tudo isso é o que Martin é na sua área. Esse cara é o Tolkien do século vinte e um, e dizer isso não é nenhum favor. É tão difícil falar de George Martin quanto é falar de Alan Moore, porque tudo o que havia pra se dizer já foi dito, porque chamar o cara de gênio é chover no molhado e porque todos os elogios são pó diante do talento do sujeito. Não falemos de Martin então, mas diligentemente leiamos a sua obra.
Apesar dos dragões, feiticeiros e outras coisas, todos os que já leram As crônicas de Gelo e Fogo não ousam contestar que não é leitura pra criança, nem de longe. A coisa é mais do tipo, "Crianças, corram para as colinas! Tapam os olhos e os ouvidos, e independente do que quer que aconteça, não voltem para cá!", porque o negócio é forte. E ainda assim não conseguimos evitar que aquele mundo de fantasia medieval exerça sobre os pequenos a mesma atração hipnótica que exerce sobre nós, mesmo não sendo para crianças.
Bom, esse aqui é. Censura livre, para todas as idades, um romance infanto juvenil. Você poderia imaginar George Martin escrevendo um romance ilustrado para crianças baseado em seu trabalho nos sete reinos de Westeros?! É, eu também não! E no entanto, eis aí o improvável dito cujo! Se é possível acreditar nas datas de registro do copyright, esse aqui precedeu a Guerra dos Tronos em uma década e meia, e assim sendo claramente foi embrião de idéias posteriormente amadurecidas, refinadas e aprofundadas. Alguns críticos opinam que a história se passa no mesmo mundo do conquistador Aegon Targaryen, e outros apontam inconstâncias nesse sentido (como a menina ainda poderia ser criança após um intervalo entre um inverno e outro?), mas no fim isso não chega a ser relevante. A história completa está aqui, sem necessitar de nenhuma leitura complementar para seu entendimento, nesse livro desconcertantemente fino para quem está acostumado ao atual trabalho de Martin. E ilustrado, ainda por cima! Ricamente ilustrado. Lindamente ilustrado, todos os elogios ao trabalho de Luis Royo. É só que é difícil acreditar que aquele cara que fez O Jogo dos Tronos também fez um livro para crianças, que ainda é todo ilustrado, e se situa no mesmo universo de Westeros! Eu não estaria mais chocado se você me dissesse que Quentin Tarantino acaba de assinar para dirigir o filme do Ben 10.
E o livro em si? Tudo de bom! Martin arregaça, sua prosa é uma canção, é melódico e harmonioso, cada palavra tem um peso e uma função, é uma sinfonia brilhantemente conduzida por um maestro que não aceita menos do que a perfeição da orquestra que o acompanha. Mesmo sendo um livro para crianças Martin não nos poupa do lado que não é bonito da guerra, a crueza, a selvageria e a brutalidade não deixam de estar lá, mas não se preocupe, pode tranquilo dar de presente para o seu irmãozinho menor, ele não vai ficar traumatizado nem nada assim, aqui o espetáculo é conduzido pelas habilidosas e seguras mãos de um renomado cirurgião. E tem "aquela coisa!" que o Harry Potter tem, de ser atraente para todas as faixas etárias. Merece seu lugar na estante de todos os seguidores da épica Guerra dos Tronos, que vão se deliciar mesmo talvez estranhando a ausência daquela dose maciça de sacanagem habitual. É, nesse aqui não tem sexo. Mas se ao olhar o tamanho do livro você parar e pensar "É um conto breve, nesse aqui não vai dar tempo ele criar um herói carismático e depois matá-lo, estou seguro dessa vez!" só te digo que os que subestimam George Martin frequentemente acabam por morder a língua. E depois não digo mais nada, porque é resenha sem spoiler. Aproveite o livro, vale cada centavo do preço e cada segundo do seu tempo. Avaliado por Ozymandias Realista como nota 9,5.
- Ítalo Azul -
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