Ponto Zero — uma análise de "Batman Ano Zero"

                                                                                                                                            | Wagner Williams Ávlis*

Um ponto introdutório
Indo direto ao ponto, toda narrativa ficcional possui uma estrutura a priori, conforme pode ser vista no gráfico abaixo.
A narrativa possui uma previsível linearidade: seu ponto de partida I tende a F, e, no entremeio, ocorrem as perturbações que dificultam I chegar a F – são as reviravoltas. Traduzindo isso, nós, leitores, antes mesmo de ler uma HQ de super-herói, sabemos, no fim, o personagem vencerá a adversidade, quer sobrevivendo, quer morrendo, por isso o que importa a nós é o entremeio, é o que acontece enquanto I não chegar a F, e é nisso com que devem se ocupar os roteiristas e os desenhistas. Apesar de a estrutura linear duma narrativa obedecer a uma lógica de peças marcadas, isto é, o herói vencendo o vilão no final, restabelecendo o equilíbrio perturbado – e isso desde os tempos mais remotos, quando a narrativa era oral e hereditária em torno de fogueiras – nunca deixou de haver leitores (ou ouvintes), de gente curiosa para saber “o que acontece” ou “como será o final”, e o fato de um leitor de quadrinhos saber que em qualquer encadernado os X-Men do Brian Michael Bendis (ou quaisquer personagens Marvel/DC) vencerão as ameaças impostas, não anula seu interesse pela leitura. Resulta daí que o que vale não é a história em si, mas o como, a forma como ela é contada e conduzida, a forma, esse procedimento que faz com que um conteúdo se diferencie do comum e se eleve à condição de arte, como preconizaram Roman Jakobson e os formalistas russos[1], é nela com que devem se ocupar os bons roteiristas e, no caso dos quadrinhos, os bons desenhistas também, posto que a imagem é ainda a forma da narrativa.
Quero ainda ater-me à reflexão sobre a estrutura narrativa. Se, a priori, a estrutura é linear com I tendendo a F (o herói vencendo o vilão), a posteriori a estrutura se torna dialética por causa de R (as reviravoltas); temos portanto dois planos estruturais paralelos, simultâneos e inseparáveis, um linear e outro dialético D (desenvolvimento) e R (reviravoltas), de modo que a tensão entre os dois é o que dá a dinâmica da leitura. É através desse último plano, o dialético, que podemos (aqui incluo leitores, críticos, historiadores, artistas) fazer juízo de valor, se a história é interessante ou não, bem-feita ou mal elaborada, memorável ou esquecível, e também é dele que extraímos o sentido de para quê ou por que se lê o que estamos lendo, já que, a priori, já sabemos como é o final com nossos super-heróis[2]; saber o final é uma certeza e não um sentido, pois o sentido não está no que é posto, e sim no que vai se pondo, não é no , e sim no ainda não. Além da criatividade do roteirista, muito desse sentido está no intrincado jogo de oposições entre herói e vilão, bem e mal, planos e acasos; são grandezas diametralmente opostas e que, bastando retirar uma delas, o sentido da outra se perde. Na lógica da narrativa, o herói depende do vilão para tornar-se quem ele é, e vice-versa; o bem é mais ensejado à medida que o mal recrudescer, o acaso se mostra mais poderoso quanto mais um plano falhar. Numa narrativa, se retirarmos os vilões não há sentido para se ter um herói; se retirarmos os heróis não há sentido para se ter vilões, o bem sem o mal, o mal sem o bem se torna absurdo e sem razão de ser, e o resultado prático disso seria um épico, um conto, um romance sem sentido, uma narrativa inenarrável, não haveria motivos para se ter uma revista em quadrinhos de heróis, consequentemente esgotando a fonte de receita das editoras. E ponto. O bem necessário é ter o mal necessário, eis uma verdade logicista e universal a ponto de estar aplicada a praticamente todas as áreas de nossa vida, aplicada, até, dentro de nosso plano imunológico e a constante necessidade de aperfeiçoá-lo por meio das lutas entre bactérias e anticorpos, substâncias e antígenos; é ainda a lógica de todas as religiões e crenças, de Deus e do Diabo em suas eternas disputas antropocêntricas por uma nova ordem e pela posse das almas[3], é, em suma, um dos fundamentos do sentido da existência.
Em Batman Ano Zero (2013)[4], a partir da informação de que o Cavaleiro das Trevas enfrentará Capuz Vermelho, Dr. Morte, Charada, independente do como a saga se dará, sabemos de antemão que Batman vencerá os três oponentes. Esta crítica analítica buscará se debruçar não só na parte que nos interessa – o desenvolvimento da saga, o como – mas também em seu ponto zero, o antes do como, isto é, o o quê.  

O ponto da análise
            Scott Snyder na escrita e Greg Capullo nos desenhos buscaram trabalhar, por todos os ângulos, uma metalinguagem da ideia de “zero” como início. Entre os números naturais está o zero que os precede, ele é o ponto de origem do conjunto e da sequência numérica, desse modo, aplicado ao título do conto de Batman, o “zero” se torna um descritor de “uma origem antes da origem”, “um começar tudo do zero”, em termos mais precisos, Ano Zero é a história de Bruce Wayne antes de querer ser Batman, algo que remete, sem estar ligado, ao Ano Um (1987), de Frank Miller com David Mazzucchelli, este, o primeiro ano de vigilantismo do Homem-Morcego em Gotham City. Essa inferência desmente uma resenha segundo a qual a saga não é uma reinvenção da origem do Batman e sim uma tentativa de inclui-lo ao universo dos Novos 52[5]; a obra é sim um conto de uma nova origem para o super-herói. A metalinguagem trabalhada com a ideia de “zero” como início é dada
Ø  pelo título que sugere origem;
Ø  pelas linhas temporais da narrativa (6 no total) que estão sempre se reportando ao “antes” (o passado);
Ø  por elementos da origem canônica do Batman, como a tragédia com os pais, a claustrofobia, o trauma com morcegos, os anos de sumiço e treinamento, os disfarces antes do traje morcegoide, o uniforme indefinido, as luvas roxas[6] no lugar das manoplas dentadas no início da carreira;
Ø  pelo relacionamento amoroso com Julie Madison, nas primeiras edições de Batman nos anos 1930, a antiga noiva[7] de Bruce Wayne;
Ø   por grande parte da história se passar pelo dia, um elemento narrativo que durante as primeiras aventuras do super-herói era algo comum[8].
Ø  Pela rememoração da capa de Detective Comics # 27 – primeira aparição do Batman (pp.96-97).

Para esse retorno ao passado (ou melhor, para esse retorno aos passados) o detalhismo gráfico de Greg Capullo é imprescindível, de forma que seu traçado meticuloso não só é a forma da narrativa, bem como é o conteúdo; mais do que desenhar o que está sendo narrado, Capullo dá forma a narrativas sequenciadas sem balão ou caixa de texto, as chamadas quadrículas ágrafas, faz pequenos encadeamentos (enjambements) com quadrículas de flashbacks e o tempo em curso, ligando passado e presente numa só narrativa gráfica, isso tudo com certa simetria, porém em tamanhos variados de painel. Um de seus mais chamativos recursos são os quadros únicos, ágrafos também, que falam pelo desenho agigantado numa só página. O que o desenhista quer fazer significar com todas essas técnicas é uma certa hierarquia imagética nas recordações de Bruce Wayne ou nas do foco narrativo, e isso é digno de reflexão; se pensarmos no real, quando sonhamos ou nos recordamos, as cenas de nossa memória não se organizam de forma simétrica, homogênea, uniforme; elas são dispostas por uma ordem gradativa, onde uma cena pode surgir mais rápida, outra demorada, uma mais curta ou desfocada, uma outra mais ampla ou nítida. Nossas reminiscências da consciência funcionam como enquadramentos de cena, as mais marcantes são determinadas por coisas como extensão, duração, enfoque, iluminação, ou seja, por recursos da pintura, da fotografia, do cinema, que, por sua vez, nos causam os maiores prazeres, pavores, traumas, saudades. É isso que Greg Capullo faz em suas quadrículas, manipulando o nanquim de forma gradativa painel a painel como quem manipula as cenas de recordações do jovem Bruce. Logo, quanto maior for o painel, maior é a emoção vivida no passado – e sentida no presente, no ato de recordar-se –, quanto menor for o painel, mais rápida ou minúscula é a emoção evocada pela cena; quando as quadrículas são ágrafas é porque a carga emotiva da lembrança se concentrou nos gestos ou na introspecção e não no discurso; quando há quadrículas de tamanho uniforme é porque as emoções ali foram vividas e sentidas “por igual” – uma técnica brilhante pouco vista em HQs mainstream hoje em dia[9]. Aliada a isso está a luminária e termal colorização de FCO Plascencia e Dave McCaig. Intensa iluminação, muito enfoque, cores quentes ou quase total ofuscação em preto dos desenhos, dos cenários, dos painéis, dão a ideia de que cada linha temporal, das recordações ao tempo em curso, são fluxos vivos da consciência.
Um dos belos painéis de Greg Capullo no recurso da memória: Bruce relembrando seu trauma do ataque do bando de morcegos na queda da caverna: "quanto maior for o painel, maior é a emoção vivida no passado e sentida".
            Para essa proposta da metalinguagem trabalhada com a ideia do “zero” como início, a seguir, uma relação dos pontos positivos/negativos do ponto de vista composicional da trama e das imagens. As mais significativas serão retomadas mais à frente para melhor dissertá-las.
Positivos
Negativos
“Ano zero” como início, mas também como processo e culminância
Verborragia e delongamento do arco (duração de um ano nos EUA)
Enfoque nos treinos preparatórios de Bruce Wayne
Nenhum aprofundamento nos “anos perdidos” de Bruce Wayne
Espacialidade dinâmica (exploração das ambiências de Gotham City)
Cenas sem sentido, inverossímeis
Abordagem do Batman “explosivo”, visceral, detetivesco, aventureiro, audacioso e vulnerável dos anos 1980
Não haver um Batman inexperiente que cometa erros em início de carreira
Explicações mais convincentes dos motivos da moeda gigante (na batcaverna) e do batsinal
Excesso e desequilíbrio de flashbacks

Motivações indefinidas e confusas nos planos do Charada

Furos de roteiro/pontas soltas

Enfoque nos treinos preparatórios de Bruce Wayne/nenhum aprofundamento nos “anos perdidos” de Bruce Wayne
           
Na gibigrafia do Cavaleiro das Trevas as edições que trouxeram suas origens não focaram o processo de treinamento do herói, o que, do ponto de vista roteirístico, é uma grave lacuna. Costumo chamar os anos ausentes de Bruce Wayne de Gotham City – em função da sua preparação pré-Batman – de “anos perdidos”, uma vacância ainda pouco trabalhada pelos escritores e algo cuja potencialidade literária é fecunda. Scott Snyder chegou a escalar esse abismo, mas foram seus corroteiristas os responsáveis por descer um pouco mais. James Tynion IV e Gregg Hurwitz compuseram contos para integrar o percurso preparatório que o jovem Bruce Wayne trilhou em sua jornada do herói. No encadernado Ano Zero há três contos de James Tynion IV com esse fim: “Onde Diabo Ele Aprendeu a Dirigir?”, que se passa no Brasil (Rio de Janeiro), “Aquela Vez...”, ambientada no Egito, “O Fosso”, na Noruega. Já nas edições mensais de número zero da série Os Novos 52, publicadas muito antes de Ano Zero, em 2012, edições essas de título Batman, O Cavaleiro das Trevas, e Detective Comics, os contos de treinamento são de Gregg Hurwitz; são eles “A Última Lição”, que se passa no Himalaia, “A Longa Espera”, com o mordomo Alfred Penniworth e o retorno de Bruce após seus anos sumidos, “Busca por Significado”, que narra o emprego de técnicas investigativas por Bruce para chegar ao assassino de seus pais. De outra monta, Scott Snyder ficou responsável pelo pós-treinamento, recontando as peripécias do jovem Wayne já treinado de volta a sua cidade natal, porém sem ainda uma identidade própria, “um vigilante sem rosto”[10]. Esses contos do Snyder pós-treinamento, situados em Gotham City, um deles publicado na edição zero da revista Batman (2012) nos Novos 52, também se interligam às linhas temporais da saga Ano Zero, são eles “Um Passado Novo em Folha”, quando Bruce Wayne entra em contato pela primeira vez com a gangue do Capuz Vermelho, “Amanhã” (esse de James Tynion IV), conto que mostra a estreia do batsinal, as quatro partes de “Cidade Secreta”, o confronto com Capuz Vermelho, as quatro partes de “Cidade Sombria”, confronto com Dr. Morte, mais as quatro partes de “Cidade Selvagem”, confronto com Charada, sendo esses doze últimos contos a centralidade do encadernado em questão. Organizando em esquema todos esses contos de origem, temos os dois seguintes blocos:
Os “Anos Perdidos”fase de treinamento preparatório de Bruce Wayne ao redor do mundo
Contos
Equipe criativa
Revista publicada
“Onde Diabo Ele Aprendeu a Dirigir?”
James Tynion IV (roteiro) e Rafael Albuquerque (desenho)
Batman n° 21 (2013)
“Aquela Vez...”
James Tynion IV (roteiro) e Rafael Albuquerque (desenho)
Batman n° 22 (2013)
“O Fosso”
James Tynion IV (roteiro) e Rafael Albuquerque (desenho)
Batman n° 23 (2013)
“A Última Lição”
Gregg Hurwitz (roteiro) e Tony S. Daniel (desenho)
Detective Comics n° 0 (2012)
“A Longa Espera”
James Tynion IV e Henrik Jonsson (desenho)
Detective Comics n° 0 (2012)
“Busca por Significado”
Gregg Hurwitz (roteiro)
Batman, O Cavaleiro das Trevas nº 0 (2012)

Estreia do Vigilantismofase do pós-treinamento de Bruce Wayne de volta à Gotham City
Contos
Equipe criativa
Revista publicada
“Um Passado Novo em Folha”
Scott Snyder (roteiro) e Greg Capullo (desenho)
Batman n° 0 (2012)
“Amanhã”
James Tynion IV (roteiro) e Andy Clarke (desenho)
Batman n° 0 (2012)
“Cidade Secreta” I-IV
Scott Snyder (roteiro) e Greg Capullo (desenho)
Batman n° 21-24 (2013)
“Cidade Sombria” I-IV
Scott Snyder (roteiro) e Greg Capullo (desenho)
Batman n° 25-29 (2014)
“Cidade Selvagem” I-IV
Scott Snyder (roteiro) e Greg Capullo (desenho)
Batman n° 30-33 (2014)

Embora tenha havido um esforço das equipes criativas para perfilar os anos perdidos do nobre gotamita, não tivemos um aprofundamento dessa intenção, até porque a noção de unidade entre os contos se perdeu durante o reboot, sendo eles, aqui e acolá, publicados de modo esparso por entre títulos e números. A edição encadernada da editora Panini não ajudou, pois não anexou ao volume grande parte dos contos dos dois blocos[11]. De modo pessoal, elegi como os melhores “Aquela Vez...”, “O Fosso” e “A Última Lição”, os três muito superiores a toda a saga de Snyder, mas que, por questão de espaço, não poderei aqui argumentar.
"Aquela Vez", um dos melhores contos dos anos perdidos de Bruce Wayne.
Excesso e desequilíbrio de flashbacks

Como antecipara acima, em toda a saga batmesca há 6 linhas temporais da narrativa, algo, a um só tempo, atrapalhado de se ler e absurdo de se trabalhar. Escritores nobéis-eruditos como José Saramago, Mario Vargas Llosa, contistas multicomplexos como Jorge Luis Borges sequer ousaram fazer tal coisa, experimentando, no máximo, três linhas temporais; a razão de não fazer é uma proporção física: quanto maior o espaço (da narrativa), menor há de ser o tempo (da cronologia); em outros termos, para balancear o ritmo e a carga de informações duma longa leitura em prosa, a narrativa, sendo extensa, é melhor compensada com um menor foco narrativo. Então, se a trama for longa, o escritor põe um ou dois narradores; pôr seis é dar passos maiores do que as pernas, risco de atrapalho na certa. Em Ano Zero Scott Snyder intercala seis linhas temporais que cortam a narrativa principal, que ora se cruzam, ora se dispersam e no fim retumbam em confusão. Para um arco que compreendeu um ano de publicação, sendo cada parte separada por meses, o leitor das revistas mensais se perdeu nessas linhas temporais; nesse sentido, o volume capa-dura ajudou a dar melhor visibilidade a essas linhas por compilar as doze edições. Mesmo assim a confusão é inevitável, porquanto o próprio roteirista, em seu manejo como escritor, não consegue equilibrar as cronologias. Para atingir esse intento, teria sido melhor se tivesse optado pela técnica de linhas temporais de Kurt Busiek em seu premiado Marvels (1994), onde o mesmo foco narrativo – um narrador-personagem, o fotógrafo Phil Sheldon – descreve ao passo que envelhece em quatro linhas de tempo no passado, do começo da 2ª Guerra Mundial à contracultura dos anos 1970, repousando em seu presente (o começo da década de 1970), e um segundo foco narrativo, apenas introdutório, outro narrador-personagem – o Tocha Humana originário, Jim Hammond – rememora suas experiências de origem em um pretérito anterior ao pretérito narrado pelo fotógrafo Phil Sheldon. Poder-se-ia ainda ter usado a técnica narrativa de Alan Moore na premiada Piada Mortal (1988), a do “narrador onisciente múltiplo”, uma onisciência que se multiplica em pequenos outros narradores, no caso de Piada Mortal, dois narradores em linhas temporais distintas: o Coringa em flashbacks e o olhar onisciente da trama, narrando o presente[12]. Usando no máximo duas linhas temporais ou dois narradores, Kurt Busiek e Alan Moore, dentro de um certo minimalismo, obtiveram o equilíbrio perfeito ao entrecruzar pretéritos e presentes.
Scott Snyder não logra êxito ao adotar seis linhas temporais, quis abraçar o mundo com as mãos. Vejamos quais são elas e como ele as trabalha na trama.
1ª linha temporal o presente em cursonarrador onisciente (pp.10-12, 124-134, 276-381).

Esse “presente” onde ocorre o núcleo da história de Ano Zero, isto é, o confronto com o Charada, é na verdade um passado. Como Ano Zero é uma história de origem e se foca no primeiro combate do detetive antes mesmo de ser Batman, esse “presente em curso” da história se passa seis anos antes de todas as histórias da fase Os Novos 52 estrear (pp.09 e 208). Ao fim da trama, a linha temporal avança para “um mês depois” de todos os acontecimentos narrados (p.373). Em termos técnicos, a saga começa in medias res[13]; em termos práticos, significa que a história começa pelo meio e não pelo início. A confusão começa por aí.

2ª linha temporal o passado antes dos eventos de Ano Zero narrador onisciente (pp.14-24, 27-29, 34-40, 43-54, 58-123, 160-179, 185-195, 198-206-215, 220-231, 235-271).

O marco inicial para os eventos centrais propriamente ditos de Ano Zero é a inundação de Gotham City engendrada por Edward Nigma, o Charada. Essa segunda linha temporal aqui – “o passado antes dos eventos de Ano Zero” – narra acontecimentos, conforme o narrador onisciente, “cinco meses antes” da inundação (p.14), englobando os confrontos com Capuz Vermelho e Dr. Morte. Até certo ponto dessa segunda linha temporal, os protagonistas da história não sabem da autoria intelectual do Charada por trás dos acontecimentos.

3ª linha temporal Memórias infantis de Bruce Wayne narrador-protagonista (pp.18, 25-26, 30, 33, 41-42, 55, 57, 183, 196-197, 231-233, 268-269, 271).

Cruzando as duas linhas temporais anteriores em intercursos, as lembranças da infância do jovem Bruce Wayne ora surgem a esmo, ora são encadeadas com cenas do “presente em curso”, formando aí bonitos enjambements que o desenhista Greg Capullo faz com maestria, sobretudo nas cenas da inundação da cidade. Aliás, Capullo busca aí se diferenciar de David Mazzucchelli, bem como de Frank Miller, substituindo a icônica cena mais noir das pérolas da sra. Martha Wayne esvoaçando em sangue e pólvora no momento de seu assassinato por algo mais sacro: substitui por uma circunferência em fogo e pólvora da pistola sobre sua cabeça em forma de auréola, dando à Martha Wayne uma significação visual de mártir da cidade, santa da família e semideia, por ser mãe de uma espécie de futuro deus a quem a criança Bruce estava destinada a ser.

4ª linha temporal Memórias juvenis de Bruce Wayne narrador-protagonista (pp.193, 274-275, 316-317, 322, 325, 347, 364-365, 377).

Basicamente essa linha de tempo cumpre a mesma função da terceira. Serve também para explicar o romance com Julie Madison ainda no tempo da faculdade.

5ª linha temporal Os anos perdidos” da fase de treinamento narrador onisciente neutro (contos “Onde Diabo Ele Aprendeu a Dirigir?”, “Aquela Vez...”, “O Fosso”)

Essa linha de tempo é intercalada com a saga principal e não possui efeito de continuidade entre os contos que retratam alguns treinos de Bruce pelo mundo afora; entretanto, esses contos pertencem ao universo dos “anos perdidos”, pois todos se passam na época em que o jovem multimilionário está fora de Gotham City preparando-se para ser um justiceiro. Snyder os intercala no intervalo entre o fim de “Cidade Secreta” e o começo de “Cidade Sombria”, como forma de intensificar o ritmo da leitura que se encaminha para maiores tensões no “presente” em curso.

6ª linha temporal Flashbacks diversos narradores onisciente neutro e protagonista (pp.158-159, 180, 207, 216-219, 378-380).

Em alguns pontos da trama, três personagens tomam posse da narrativa por meio de flashbacks, num total de quatro, que desembocam na trama principal. Dois deles pertencem ao vilão Dr. Morte, que retrocedem no tempo sem ser conduzidos pela lembrança do personagem, mas pelo olhar onisciente de um narrador (narrador onisciente neutro); já os outros dois, um do Tenente Gordon e outro do Alfred, são conduzidos por eles mesmos (narrador protagonista). Os quatro flashbacks em apreço são os de
Ø  Dr. Morte ──── alusão ao seu filho nos tempos de guerra, em 1946.
Ø  Tenente Gordon ──── retomando uma recordação que Bruce recordara bem antes e na qual ambos participaram.
Ø  Alfred Penniworth ──── reimaginando o futuro de Bruce Wayne com Julie Madison, caso tivesse optado por não ser um vigilante.

Sem delongas e sem me ater a minúcias, posso afirmar, categoricamente, que as seis linhas temporais são mal distribuídas no decorrer de toda a saga, num desequilíbrio que tem por efeitos a dispersão e a confusão cronológicas; algumas cenas focalizadas dentro delas ficam, aliás, sem explicações ou sentido, caracterizando pontas soltas no enredo. Era previsível que Scott Snyder iria incorrer num erro desse, pois buscou combinar o incombinável, o rearranjo de seis linhas temporais (com seus respectivos focos narrativos) na trama durante um ano de arco mensal.

Espacialidade dinâmica (exploração das ambiências de Gotham City)/abordagem do Batman “explosivo”, visceral, detetivesco, aventureiro, audacioso e vulnerável dos anos 1980

A espacialidade dinâmica é um recurso narrativo que explora vários espaços da ambiência duma trama, em cujo recurso fora o maior mestre Jim Starling. Ano Zero explora esse recurso muito bem. O zoneamento de toda a Gotham City é percorrido pelo Cavaleiro das Trevas em suas múltiplas aventuras, dos subterrâneos aos ares de Gotham, do cais ao centro e, como que num efeito hiperbólico, vimos surgir uma Gotham City selvagem, um tipo de retorno à primitividade de Gotham – a Gotham antes de ser cidade, a Gotham reiniciada de “zero” – depois de uma inundação em larga escala perpetrada pelo Charada; essa cidade selvagem demanda outras espacialidades dinâmicas circunscrita no centro da cidade até que tudo volte ao seu estado normal. Na esteira dessa ambiciosa exploração do espaço está um Batman menos comedido, menos disciplinado, muito mais audacioso, vulnerável, que sangra muito, é ferido e que se vê, por diversas vezes, limitado diante de gigantescas peripécias, não é pois o Batman “fodão” que veríamos na fase pós-Fim do Jogo, de Geoff Johns e Jason Fabok na Liga da Justiça.

  Cenas sem sentido, inverossímeis, furos de roteiro/pontas soltas/ motivações indefinidas e confusas nos planos do Charada

Buscar o exagero é uma pretensão excessiva e me parece que esse tem sido o alvo perseguido pelos roteiristas da moda. O problema é que exagerar para chamar a atenção muitas vezes leva a chamar a atenção aos erros, pois o excesso leva a falhas. Scott Snyder tropeça por esses percalços. Confiramos as cenas falhas na trama.
Cena
Falha
Prelúdio: Batman, na sua motocross, encontra pela primeira vez o menino Duke e o salva de ser agredido.
Incoesão e ponta solta: O prelúdio é uma cena in media res – é um episódio próximo do fim da história, com a Gotham City em selva. Entretanto, quando, no fim do arco, a linha temporal encontra normalmente as histórias que se passam na Gotham selvagem, Bruce Wayne, sem o uniforme de Batman, conhece o menino Duke em outra situação: inconsciente e hospedado na casa do garoto.
Primeira cena de “Cidade Secreta”: Bruce, disfarçado de caminhoneiro, resgata reféns dentro de um caminhão-baú cercado pela gangue do Capuz Vermelho.
Sem sentido e absurdo: Bruce arrisca acelerar o caminhão para furar o bloqueio da gangue, e, em vez de seguir acelerando e ir embora (podendo também sair de ré suportando os disparos), dispara um lançador para prender o caminhão em altas vigas e, de cima delas, escorregar os reféns para o mar logo abaixo de onde estava a gangue do Capuz, para em seguida serem socorridos pela guarda-costeira.
Cena do dirigível: Bruce está disfarçado de Oswald Cobblepot (o Pinguim) para desbaratar uma operação da gangue do Capuz Vermelho.
Furo: Não é explicado como Bruce sabia da operação, como teve acesso ao dirigível e em que momento imobilizou o verdadeiro Oswald Cobblepot.
Explosão de um depósito de uma das empresas Wayne: Bruce é convidado para uma confraternização de boas-vindas, uma emboscada do Capuz Vermelho, pois não há ninguém na festa e sim explosivos que são detonados à distância
Inverossimilhança: Bruce é pego de surpresa pelas explosões em série, sendo que a primeira delas é precisamente na sala onde entrara. Ele sobrevive e não se queima.
Incêndio na fábrica Ace: O tenente Gordon, junto com sua equipe, encurrala Batman que, de costas, está sob a mira do tenente.
Absurdo: Batman consegue tranquilamente virar-se à frente, e, fazendo movimento de saque no cinto, dispara um taser contra Gordon sem que esse, o tempo todo com a arma em punho, nada reaja.

 Além disso tudo, temos ainda os planos sem nexo de Edward Nigma, o Charada. Comecemos pelo plano geral: fazer Gotham City voltar retornar ao estado selvagem e manter o controle sobre ela. A pergunta é, para quê? Qual a vantagem que se tira em controlar uma cidade arruinada, sem recursos financeiros, bens, energia elétrica? Se for o caos e a anarquia, isso está mais para o Coringa do que para o Charada. Tem-se ainda outro agravante; esse primeiro grande plano de Nigma não se correlaciona com seu passado nem com sua carreira contada nada saga – um conselheiro estratégico da Wayne Interprises. As charadas que o vilão emite são ridículas e absurdas, de um lado, não desempenham funcionalidade nenhuma na trama, de outro, impossíveis de serem adivinhadas pelo leitor, tendo seu deciframento possível somente ao Batman, ou seja, apenas o roteirista é capaz de responder aos enigmas que ele mesmo propõe. Um exemplo é:

“Acima do diâmetro eu caminho escondido à sombra do perímetro. Se olho para baixo, enxergo o que enxerga à distância constante de alguns centímetros”

Resposta (do Batman):  “É um piolho. ‘Acima do diâmetro e à sombra do perímetro sugerem o número PI, que é igual ao perímetro de uma circunferência dividido por seu diâmetro. E quem ‘enxerga’ é o olho. A resposta é um piolho, andando por uma cabeça e colocando ovos...”


         O Canal O Vício afirmou que o Charada de Ano Zero é a melhor abordagem já vista do mestre dos enigmas, visto, dessa vez, como uma verdadeira ameaça. A meu ver, aqui, o Charada teve sim uma melhor atuação em termos de extensão e influência em todo o arco, mas não chega a ser a melhor atuação justamente pelas falhas apontadas. Continua sendo a melhor abordagem a do Peter Milligan em Cavaleiro das Trevas, Cidade das Trevas, de 1990, em que Edward Nigma resgata um ritual antigo duma sociedade secreta fundante de Gotham City[14] (em 1793 chamada “Gothame”), manipula todos os ritos de iniciação, forçando Batman a passar por todos eles para apenas, no fim das contas, imolar o Homem-Morcego como uma vítima de expiação.
            Segue que Ano Zero é um grande blockbuster dos quadrinhos, rendendo até action figures da franquia, e como todo blockbuster, há mais investimento em pontos visuais e de ação do que propriamente em qualidade de roteiro, um marco zero para o mundo dos Novos 52, um ponto zero se comparado a toda gibigrafia do Cavaleiro das Trevas.
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WAGNER WILLIAMS ÁVLIS – crítico literário da Academia Maceioense de Letras (reg. O.N.E. ​nº 243), professor de Língua Portuguesa, articulista, historiador do Homem-Morcego.




[1] JAKOBSON, Roman. Apud. SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da Literatura – série Princípios, 4ª ed. Cap. IV: “A literariedade como objeto da teoria da literatura”. São Paulo: ed. Ática, p.45.

[2] Nos quadrinhos mainstream essa certeza é tão exata que, mesmo vendo um super-herói famoso morrer na trama, sabemos que ele efetivamente não morreu ou, se sim, ressuscitará de alguma forma.

[3] A visão dual-maniqueísta de um cristianismo mais coloquial, acessível, diluído – portanto mais difundida – sobre a disputa entre Deus e o Diabo, onde o homem é um fantoche, os dois entes são os ventríloquos e o espírito humano é para ambos mais valioso do que o universo, do que as miríades angelicais, do que a própria ordem da existência física ou etérea, tem sido alvo de irrefutáveis críticas ateias, filosóficas. O movimento neoateu, que tem por baluartes Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris, Christopher Hitchens e Ayaan Hirsi Ali, difunde uma analogia com a dualidade entre herói e vilão dos quadrinhos como ironia à crença no Deus bíblico. Segundo ele, Javé (ou Jeová) e Satanás, assim concebidos por esse cristianismo popular, são personagens criados pelo homem para manter toda a superestrutura de domínio, propriedade, medo e monopólio da fé sobre seus fiéis e em favor das instituições jurídicas cristãs; sem Satanás o homem não temeria os infernos e sem Deus o homem não seria bom, sem Satanás não haveria a quem responsabilizar pelos males no mundo, e sem Deus não haveria esperança de remissão ou justiça. As disputas entre Deus e o Diabo funcionariam, segundo esse neoateísmo, como um motor que dá movimento e sentido à existência e às conversões, à oferta e à procura por congregações de diversos fins, mas que, ao fim de tudo, todos os fiéis sabem que nessa disputa Deus sairá vitorioso, num tipo de conquista predestinada, já posta, que, enquanto não acontece, o sentido de ser cristão vai sendo dado. O neoateu George Carlin, de forma anedótica, diz que “enquanto a vitória divina não acontece, Deus e o Diabo vão se divertindo num jogo de pôquer, de quem perde ou ganha mais”, e Christopher Hitchens afirmava que se esse Deus existisse ele seria sádico, não existindo, é o personagem mais imoral da ficção mundial, porquanto, sabendo do que predestinou e tendo poder para eliminar o Diabo (e todo o mal derivado) mas não fazendo, mostra que tem prazer no sofrimento universal e na condenação das almas. Seja como for, as críticas neoateias atingem em cheio a visão simplista do cristianismo – no entanto a mais conhecida entre as massas – e não tanto as teses formais do cristianismo da alta teologia. Quis citá-las para exemplificar como a dualidade dos quadrinhos heroicos é uma verdade atemporal, permeando diversas dimensões da cultura humana.

[4] Ano Zero (2013), de Scott Snyder e Greg Capullo, foi publicado no Brasil pela ed. Panini em 2014 na revista mensal “Batman” e nos tie-ins do mix “A Sombra de Batman” e de outros títulos DC na fase Os Novos 52, cujos quais disponibilizo aqui. Acompanhei a saga integralmente no mix “Batman”, que englobou as edições de número 21 ao 33. A presente crítica quadrinística se refere ao volume único capa-dura Os Novos 52! Batman Ano Zero, ed. Panini, 2017, 396 págs.

[5] 2Quadrinhos – canal no Youtube.

[6] Nos primeiros contos do Homem-Morcego nos anos 1930 não faziam parte do seu uniforme as manoplas dentadas que simulam o patágio dos morcegos; em seu lugar, era usado um par de luva roxa simples, numa insinuação de que o uniforme ainda estava em processo de confecção. Na colorização brasileira tanto a cor preta da capa, da máscara, das botas, quanto a cor roxa das luvas foi substituída pelo azul por ser mais econômica para as editoras.

[7] Cf. “Batman Contra o Monge Louco, partes 1 e 2”. Detective Comics # 31 e 32 (setembro-outubro, 1939). Roteiros de Gardner Fox e Bill Finger, arte de Bob Kane. Crônicas vol. I. As Primeiras Histórias de Batman em Ordem Cronológica. Ed. Panini, 2007, pp.41-62. Julie Madison foi retratada noutro ensaio meu chamado “O Morcego, o Vampiro e o Lobisomem”.

[8] O vigilantismo noturno como regra de Batman ainda não era algo estabelecido nos anos 1930.

[9] Outro desenhista que se destacou com essa mesma técnica durante a fase Os Novos 52 foi Tony S. Daniel.

[10] Hotsite Panini. Checklist abril de 2017.

[11] O volume capa-dura da Panini se limitou a traduzir o capa-dura da DC nos EUA. Nele constam somente os contos – nesta mesma ordem diacrônica – “Cidade Secreta” I-IV, “Onde Diabo Ele Aprendeu a Dirigir?”, “Aquela Vez...”, “O Fosso”, “Cidade Sombria” I-IV,  “Cidade Selvagem” I-IV e o epílogo “Pessoas no Escuro”, um conto com duas crianças gotamitas que acontece durante “Cidade Selvagem”. Disponibilizo aqui as edições zero com os contos de origem que não saíram no volume capa-dura.

[12] Sobre a técnica do “narrador onisciente múltiplo”, ela foi decomposta por mim na crítica Matando a Piada: o Final, Afinal, de Piada Mortal.
[13] In medias res, “expressão latina que significa ‘no meio das coisas’. Técnica narrativa literária que consiste em relatar os acontecimentos da história, não pelo seu início, mas pelo momento crucial e pelo meio da ação, como forma de cativar a atenção do leitor. Para além disso, esta técnica permite suprimir incidentes desagradáveis e atenuar os intervalos entre os acontecimentos que, muitas vezes, perturbam a continuidade da ação” – apud Infopedia. Porto: Porto Editora, 2003-2017 [consult. 19/08/2017 19h:10min.].

[14] Cf. Batman nºs 18 e 19 (3ª série). Ed. Abril, 1991. O nome da sociedade secreta fundante de Gotham City não é mencionado no enredo de Peter Milligan, mas se sabe que ela é política e crê no sobrenatural, já que ela cultua o símbolo do morcego. Há claros indícios de que desse roteiro Scott Snyder retirou elementos para criar a Corte das Corujas e parte dos aspectos do Charada de Ano Zero. Por questão de espaço, não farei esse balanço comparativo.

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