Realismo na Pop Art: realismo x realidade (parte 2 de 3)



 Wagner Williams Ávlis*

Com o advento do desenho e da trama realistas[1] nos quadrinhos de gênero heroínico mais o cinema de cunho “realista” (como gíria para “em conformidade com a realidade”), o termo realismo passou a ser reivindicado, esperado e privilegiado no mundo nerd. De repente passou a haver uma dicotomia: só é bom, convincente, promissor se o filme, a HQ, o game ou o livro for “realista” (em termos de gíria para “algo como a realidade”); se não for, o material é questionável, quiçá legado ao lúdico infantil, e esse raciocínio redunda na mesma concepção preconceituosa que nossos avós tinham sobre pop art no início do séc. XX. Em melhores termos, o preconceito que julgamos não ter mantemos sob outro molde, o molde da ilusão de estar na crista da onda da moda, a de ser nerd.
A questão é que quando o público clama e enaltece o suposto “realismo” na arte, está querendo ver algo que acontece na realidade concreta, desejando, aliás, ver os super-heróis esvaziados de seu conteúdo mágico, idealista, “super”. Quer ver um humano e não um übermensch; quer ver algo próximo a um documentário, com o mínimo de efeitos especiais, sem digitalização em privilégio da ação, e não uma explícita peça dramatúrgica e cinematográfica. Quer a realidade projetada. Mas realismo não é isso, e nenhum objeto artístico será real (ainda que seja um caso verídico ou adaptação de caso real), pois, ensinam os teóricos[2], a partir do momento que o real é transposto para arte, esta o transforma em outra coisa que não é nem a primeira, nem o real. A arte é uma ficcionalização da vida, e por isso se diz que ela imita a vida, e esta, a arte.
O realismo é uma estética artística, um estilo técnico. “É uma reação contra o romantismo, este, a apoteose do sentimento e a anatomia do caráter; o realismo é a crítica ao homem, é a arte que nos pinta a nossos próprios olhos para denunciar o que houver de mal na sociedade”[3]. Vejamos suas características na literatura e na pintura.

Estética Realista
Na trama
No desenho
§  Análise/valorização do indivíduo e do qu e é individual
§  O homem é um ser social (determinado pelo tempo, pelo lugar, pela cultura)
§  Narrativa documental, experimental ou “de tese”
§  Vê a sociedade da razão pelos instintos
§  Crítica social
§  Fim do maniqueísmo, êxito do mal, preferência por anti-heróis

    § Análise/valorização do indivíduo             naquilo que é universal
    §   A anatomia nem perfeita, nem ideal,     mas próxima do real
    § Cores fortes, quentes, expressivas,         sobreposição da luz sobre a sombra,            movimento constante e não linear
  §  Traço sujo, expressões profundas,    linhas de expressão, exposição dos     músculos ou da nudez
  §  Fotojornalismo (pose que sugere cenas  espontâneas ou flagrantes)

Juntando as características da trama e do desenho, temos uma pop art realista assim:
Realismo na pop art
§  verossimilhança;
§  "as coisas não como são de fato, mas como poderiam ser"[4]
§  análise psicológica ou intimismo;
§  retrato da realidade sob uma ótica universal (universalismo);
§  intervenção humana na realidade.

Logo, por exemplo, os filmes da trilogia Nolan de Batman são realistas, não porque pretendem decalcar a realidade, ou porque quiseram ser mais convincentes do que os anteriores (o conceito envolvendo um sujeito vestido de morcego é irreal ao extremo), mas porque, em sua ficção, buscaram abordar situações que fazem algum sentido caso viessem a acontecer no mundo real. Com essa mesma lógica segue o personagem Batman, quer nas HQs, quer nas animações ou nos games. Batman é um personagem verossímil, não porque seja apresentado como um sujeito real saltando prédios, telhados, catedrais, movendo-se num batmóvel ou planando num jato; é verossímil porque obedece àquelas características listadas e porque, se houvesse a possibilidade de alguém imitá-lo realmente, seria mais ou menos daquele jeito; ou seja, Batman é ainda um exercício de ficção hipotética, como todos os outros super-heróis que vêm sendo retratados a partir da Era Moderna (1986 à atualidade).
Sátira ao tão exigido "realismo", de Dan Piraro, da Bizarro Comics, na tirinha "Feline Attraction". O balão diz: "Nota, olhe, alguém está em apuros!".
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(*) Professor de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Redação, escritor da Academia Maceioense de Letras, articulista de imprensa. Nas horas vagas, é historiador do Homem-Morcego. 


[1] O realismo tanto em desenho como em tramas nas HQs é muito anterior a Kurt Busiek e Alex Ross com seu “Marvels” (1994). Ainda no fim da década de 1970, Boris Vallejo, artista peruano, já desenhava/coloria personagens do gênero da fantasia. Outros nomes ligados ao realismo em desenho quadrinístico anteriores a Alex Ross são Frank Frazetta, Luis Royo, David Delamare, Gerald Brom, Nigel Suckling, Michael Whelan, Keith Parkinson, Drew Posada, Jon Hul, Olivia de Berardinis, Julie Bell, David Palumbo. O início do realismo em tramas de HQs é geralmente colocado na estreia da Era Moderna dos Quadrinhos, com Alan Moore em seu “Watchmen” (1986), Frank Miller em seus “Cavaleiro das Trevas” (1986) e “A Queda de Murdock” (1986). Eu defendo que o início foi, de fato, com Alan Moore, mas em 1983 (e portanto antes da Era Moderna) com seu arco do Miracleman.

[2] “[...] O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos”. CHKLOVSKY, Viktor. Apud. JUNIOR, Arnaldo Franco. In. BOCINNI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria Literária, Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003, p.95.

[3] Eça de Queirós – escritor português. Conferência “O Realismo Como Nova Expressão à Arte”. Apud NICOLA, José de. Painel da Literatura em Língua Portuguesa: Brasil, Portugal, África, 2ª ed. (Colab. Lorena Mariel Menón, Lucas Santiago Rodrigues de Nicola). Cap. 18: Os estilos de época da Revolução Industrial à 1ª Guerra – Realismo/Naturalismo. São Paulo: ed. Scipione, 2011, p.285.

[4] ARISTÓTELES. Arte Poética (trad. Pietro  Nassetti). Cap. IX: História e poesia. São Paulo: ed. Martim Claret, 2004, p.43-44.

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